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Brasil
29/10/2017 10:29:00
As vidas provisórias dos atingidos pelo desastre da Samarco em Mariana
As vítimas do rompimento da barragem de Fundão esperam há dois anos pela chance de retomar seus lares, seus trabalhos e suas histórias

Época/PCS

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“É uma casa rosa”, diz Eliane Salgado, enquanto nos guia por onde um dia foi a Rua São Bento. O caminho é curto: uma pequena ladeira que ligava a Igreja São Bento à Igreja das Mercês. O chão está coberto por uma poeira fina, cor de argila. O tempo está seco. Ruínas vão surgindo conforme caminhamos.

À esquerda, a antiga Escola Municipal Bento Rodrigues está tomada pelo mato. Do outro lado, uma mesa de pebolim atravessa a janela de outro escombro, encrostada de lama. As casas que se sucedem, também tomadas de lama e mato, não têm janelas, telhados ou portões – tudo foi saqueado. Pouco antes de chegarmos, Eliane suspira. “Não. Minha casa era rosa. Agora nem cor tem mais.”

Um agricultor caminha por Paracatu de Baixo, uma das comunidades destruidas pela lama (Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP)

Estamos em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, Minas Gerais. Outrora um vilarejo rural, é agora uma cidade fantasma, com acesso controlado pela Defesa Civil. Eliane é uma das cerca de 600 pessoas que moravam “no Bento”, como a comunidade costuma falar, até novembro de 2015. Foi quando a barragem de rejeito de minérios Fundão, da mineradora Samarco e de suas controladoras Vale e BHP, se rompeu.

A arrebentação liberou uma enxurrada de lama podre que devastou três comunidades, contaminou e exterminou a vida no Rio Doce e percorreu 670 quilômetros até chegar ao mar. Destruição que configura o maior crime ambiental da história do Brasil. Eliane, então auxiliar na escola, hoje trabalha numa equipe que faz escavações na Igreja São Bento, em busca de imagens de santos e peças de valor soterradas. Sua casa, a poucos metros da igreja, manteve-se em pé para, dias depois, ser depenada por ladrões. A casa de sua mãe, não muito longe dali, foi inundada pelos rejeitos. Da igreja, restam apenas paredes que não chegam a meio metro de altura. “Eu sonho com isso. Nos meus sonhos, a lama afoga o meu filho.” Eliane não perdeu nenhum familiar, mas o rompimento matou 19 pessoas.

Eliane fala pouco, num tom apático. Foi deslocada para Mariana. A demora na reconstrução de um lar é sua segunda tragédia. “Só queria que construíssem o novo Bento logo. A vida em Mariana não está boa, não”, diz. ÉPOCA visitou Mariana e Barra Longa, os municípios atingidos pela destruição. Dois anos depois da tragédia, o reassentamento dos atingidos não começou. O valor das indenizações não foi definido. Os processos na Justiça se arrastam. O rejeito talvez nunca seja retirado do meio ambiente. “Algumas coisas avançaram”, diz o procurador da República em Minas Gerais José Adércio Sampaio, responsável pela força-tarefa que investiga a Samarco. “Mas a tragédia humana continua sendo tratada como emergência. Isso causa insegurança nas comunidades.” Os atingidos estão duplamente vulneráveis – pela tragédia do passado e pela angústia sobre o futuro.

SANDRA QUINTÃO Diante das ruínas do bar que levava seu nome, a comerciante vai às lágrimas ao lembrar do piso e do fogão a lenha (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

Na tarde de 5 de novembro de 2015, um reservatório que continha mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos secos, em forma de areia, da barragem de Fundão se rompeu. Rejeito é o termo técnico para o lixo que sobra no processo de mineração – no caso, de ferro. Os rejeitos escoaram para a barragem de Santarém, também da Samarco, de armazenagem de água. A mistura criou uma lama, que transbordou e ganhou força e velocidade. Treze funcionários da Samarco morreram. Oito quilômetros adiante, essa enxurrada chegou a Bento Rodrigues.

Pela lei, a Samarco devia ter uma sirene ou um equipamento para avisar a população. O equipamento existia, mas estava em manutenção. A comunidade foi avisada por pessoas descendo as ruas de moto, aos gritos. Quatro moradores e um turista morreram. A 19ª vítima nunca foi identificada. A onda de rejeitos devastou mais duas comunidades: Paracatu de Baixo, no município de Mariana, e Gesteira, no município de Barra Longa. Desaguou no Rio do Carmo e, enfim, no Rio Doce. A onda alaranjada seguiu dissolvendo margens e calhas dos rios. Dezessete dias depois do rompimento, a lama escorreu para o mar.

No centro de Barra Longa, o lodo contaminado já foi completamente retirado. Nos três outros distritos, não – o Ministério Público considera os escombros enlameados como prova do crime da Samarco. A região foi identificada como área de risco pela proximidade com a barragem rompida, o que impede o retorno das famílias. Há propostas para transformar as ruínas em um memorial.

Os moradores estão desterrados. Esperam, impacientes, para ser reassentados em novas casas em um terreno vizinho. É custoso entender tamanha demora. “A vida da gente está assim: é como se estivéssemos assistindo a um filme e alguém pausou para pegar a pipoca. Parou”, diz Rosária Ferreira Duarte Frade, uma das integrantes da Comissão dos Atingidos, moradora de Paracatu de Baixo. Desalojados de suas vidas, de suas casas, longe da roça e de seus animais e sem emprego em Mariana, os atingidos estão num limbo. Não raro, o ócio e a discriminação que eles passaram a sofrer levam à depressão.

Em uma casa próxima às ladeiras de pedra que levam à parte histórica de Mariana fica um dos 13 escritórios que a Fundação Renova mantém em Minas Gerais e no Espírito Santo. Criada para gerir o dinheiro que as mineradoras são obrigadas a investir nas áreas devastadas por seus rejeitos, a Renova é a responsável pelo reassentamento das famílias atingidas, por toda a operação de limpeza, reconstrução e recuperação do estrago no meio ambiente. Tudo no escritório é muito novo.

As salas são limpas, os banheiros adaptados e há seguranças na porta. A Renova surgiu como parte de um acordo assinado pela então presidente Dilma Rousseff e os presidentes da Samarco, da Vale e da BHP no ano passado. O acordo prevê que a Renova use ao menos R$ 11 bilhões dos recursos das mineradoras. Atualmente, ela executa 42 programas, em que aportou R$ 2,5 bilhões – gastos com auxílio financeiro e moradia às vítimas; antecipação de indenizações; atendimento à saúde, física e psicológica, das vítimas; reconstrução de duas escolas; obras nas calhas dos rios e em uma estação que filtra a presença de metais na água em Governador Valadares, entre outros investimentos.

Recriar as comunidades destruídas pelo lodo deve custar cerca de R$ 500 milhões. Nenhuma obra começou até o momento. A Renova diz que o processo é “complexo e participativo” e que todas as etapas do reassentamento são discutidas com os atingidos e avaliadas pelos órgãos governamentais. Para a escolha do terreno que abrigará a comunidade de Bento Rodrigues, por exemplo, foram levantadas 18 áreas. Três foram analisadas. No dia 17 de maio, os desterrados elegeram como novo lar um terreno conhecido como Fazenda da Lavoura, a 14 quilômetros de onde viviam.

O desenho da nova comunidade deve ser exatamente igual ao do distrito devastado pela lama: as igrejas, os prédios públicos, as ruas... “O objetivo é restabelecer o modo de vida numa condição igual ou melhor do que a anterior”, diz Marco Vital, engenheiro da Renova. Também as casas devem ser idênticas às soterradas. Se o atingido tinha um canil ou uma garagem, a Renova é obrigada a replicar. A expectativa é que o desenho final do novo Bento seja aprovado pela comunidade neste ano, o projeto passe por um licenciamento-relâmpago e as obras comecem no ano que vem, para ser entregues em março de 2019. Quase cinco anos após o rompimento da barragem. No caso de Paracatu, ainda há uma parte do terreno em negociação. O terreno para assentar os moradores de Gesteira já foi escolhido, mas não foi comprado.

A vida provisória dos atingidos é levada em casas alugadas pela Renova em Mariana e Barra Longa. As famílias também recebem um auxílio emergencial, de um salário mínimo mais R$ 80 por dependente. E ainda devem ser indenizadas pelas perdas patrimoniais e por danos morais. Essa indenização está longe de ser acertada. Em uma audiência pública acompanhada pela reportagem no dia 16 de outubro, atingidos e uma equipe de assessoria técnica de um lado e advogados da Samarco do outro debatiam as regras para fazer um cadastro dos bens destruídos. Em dois anos, não há sequer um inventário coerente das perdas. O Ministério Público de Minas Gerais conseguiu que a mineradora antecipasse parte da indenização para quem perdeu veículos ou casas.

Segundo o promotor de Mariana, Guilherme de Sá Meneghin, essa decisão judicial provocou um amargo efeito colateral: multiplicaram-se os episódios de discriminação contra as vítimas dos rejeitos. “Logo depois do desastre, a população da região abraçou os atingidos. A situação começou a mudar quando passamos a assegurar a eles alguns direitos. Eles passaram a ser vítimas de novo, agora de preconceito. São acusados de aproveitadores e de estarem impedindo a volta da operação da Samarco.”

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