Sábado, 20 de Abril de 2024
Comportamento
11/09/2016 07:57:00
“O problema da polícia é quando ela considera a população como inimiga"
O ex-chefe da polícia de Seattle diz que a simples presença de oficiais com armas pesadas e trajes de proteção pode ser um fator que aumenta a tensão em manifestações

Época/PCS

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Norm Stamper, o ex-chefe da polícia de Seattle (Foto: Divulgação)

Norm Stamper era o chefe da polícia de Seattle, maior cidade do estado americano de Washington, quando a cidade entrou em erupção em 1999, durante reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC).

As manifestações – que agregavam desde ativistas do meio ambiente a grupos anticapitalistas – rapidamente evoluíram para um cenário de caos e violência, com atos duros de repressão por parte da polícia. As cenas de prisões em massa, manifestantes sentados atingidos por spray de pimenta e gás lacrimogêneo espalhado nas ruas ficariam conhecidas depois como “A Batalha de Seattle”.

Stamper pediu demissão pouco depois do ocorrido, se aposentou e, desde então, dedica a vida a discutir o papel da polícia e os problemas em como as forças de segurança americanas país lidam com civis. Ele fala sobre o assunto em seu livro mais recente, To Protect and Serve: How to Fix America’s Police (Proteger e Servir: Como consertar a polícia americana). Em entrevista a ÉPOCA, Stamper falou sobre as lições aprendidas em Seattle.

ÉPOCA – Qual deveria ser a conduta da polícia ao lidar com protestos?

Norm Stamper – Em sociedades democráticas, a prioridade é a polícia entender que ela pertence ao povo. A atitude dos policiais e seus superiores frente aos manifestantes é vital, é primordial. Esses manifestantes são cidadãos e eles têm o direito de se expressar e se manifestar. Em protestos, os manifestantes ocupam muito espaço.

Se um cruzamento ou calçada estão ocupados e as pessoas não conseguem passar, a polícia é instruída a tomar alguma atitude para resolver isso. Protesto, por definição, é um rompimento (da normalidade). Um dos principais objetivos dos protestos é esse. A polícia não é inimiga. Na verdade, a polícia deve se ajustar à ideia de que juntos – policiais e os manifestantes – podem estabelecer normas para a manifestação. Pode haver uma parceria genuína.

Historicamente, a polícia sempre tomou atitudes arbitrárias e algumas vezes imprudentes, e isso tem que parar. É importante lembrar que vimos alguns exemplos positivos recentes, como nas convenções partidárias de Cleveland e na Filadélfia. Os policiais não estavam com armaduras cumprindo uma função de guarda militar, eles estavam usando os uniformes comuns, a vestimenta do dia a dia. Eles não estavam vestidos, equipados ou armados como soldados, ou seja, o que se imagina é que eles estavam ali para preservar a paz, não para exercer nenhum tipo de violência. Constantemente volto a falar sobre a atitude da polícia, porque acredito que o maior problema é considerar a população como inimiga.

ÉPOCA – Como podemos mudar essa cultura de combate para uma cultura de manter a paz?

Stamper – Levando em conta que a polícia teve não só décadas, mas gerações com essa mentalidade que queremos mudar, isso não vai mudar do dia para a noite. Isso vai requerer decisões de líderes: da população, da polícia e dos próprios protestos. Assim, pode haver a possibilidade da parceria entre essas partes. A cultura vai mudar quando as instruções mudarem. Enquanto os policiais aparecerem militarmente vestidos e armados, a mentalidade da instituição vai ser: “Estamos numa guerra. Vamos encarar o inimigo e os inimigos são os cidadãos”. Os líderes da polícia podem deliberar e fazer uma escolha de não aparecer desta forma. Ao contrário, estender o convite aos líderes dos protestos para traçar um plano para as manifestações e executá-lo nas ruas. Eu acho totalmente possível a união dos líderes para fazer a diferença neste cenário.

ÉPOCA – Como podemos identificar pessoas que estão cometendo atos de violência, e não punir todos os manifestantes que participam do protesto? O uso comum de armas não-letais é uma solução adequada?

Stamper – Armas não letais, como balas de borracha, gás lacrimogêneo, entre outros, podem ser extremamente provocativos. Até mesmo pela aparência, elas podem causar em manifestantes que não são violentos o sentimento de: bom, nós tentamos agir pacificamente, e olha como a polícia reagiu, com todo esse “armamento”. As armas de bala de borracha realmente se parecem com armas de guerra.

Se elas aparecem porque alguém danificou uma lixeira, por exemplo, isso é infração da lei e a polícia pode agir, faz sentido. Mas será que não faz mais sentido deixar os demais cidadãos policiarem uns aos outros? Eles vão ver a atitude de um sujeito, avaliar que não foi aceitável e pensar: vamos colocar um ponto final nisso agora, não queremos provocar a polícia, não queremos que ela use este tipo de equipamento.

ÉPOCA – O senhor acredita que as autoridades da polícia americana, em geral, aprenderam com os erros vistos em Seattle de 1999?

Stamper – Posso falar pela minha perspectiva que meus colegas não aprenderam com os erros que aconteceram em Seattle. Aprenderam algumas lições, claro, mas não muito com a nossa experiência ali. É um grande erro, por exemplo, usar gás lacrimogêneo contra manifestantes que não são violentos. E sim, o que vimos recentemente em Oakland, Nova York, Ferguson, foram policiais fazendo exatamente isso, e aí vimos as multidões serem inflamadas e responderem ao que acreditaram ser violência policial.

Em Seattle, o que vimos foi o uso indiscriminado de spray de pimenta. A polícia precisa entender que toda a ação dela vai ter um custo. Se você tem imaginação, ou um senso razoável de julgamento e capacidade de comunicação com os manifestantes, você pode ter um resultado pacífico.

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