Quinta-Feira, 18 de Abril de 2024
Cultura
11/01/2016 18:40:00
Morte de David Bowie prenuncia o fim da música do século XX

Veja/PCS

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Foto: Mixme

Dias atrás, um amigo me fez uma pergunta sobre Young Americans, de David Bowie. Eu esclareci a dúvida dele e senti vontade de escutar o disco novamente. Lançado em 1975, Young Americans não se assemelha aos trabalhos anteriores de David Bowie, mais voltados para a psicodelia e o glam rock. Ele tem uma presença marcante da música negra americana, em especial aquela produzida da Filadélfia – o que levou o cantor a batizar o estilo de “plastic soul”. Os álbuns seguintes de Bowie pouco trariam da negritude de Young Americans (embora Station to Station, meu predileto dentre a sua discografia, traga ainda alguns resquícios de soul e de funk). Bowie foi a fundo no rock alemão na trilogia Low (1976), Heroes (1977) e Lodger (1978); nos anos 1980, aflorou seu lado hitmaker em discos como Let’s Dance, de 1983 (“Eu quero hits” , disse ele ao produtor Nile Rodgers) e bobagens como Tonight (1984) e Never Let me Down (1987). E ainda vieram obras influenciadas pelo drum’ n’ bass jamaicano e o jazz – estilo que marcou sua colaboração com a maestrina americana Maria Schneider e com o quarteto do saxofonista Donny McCaslin, que dá o tom em Lazarus, faixa de seu último álbum, Blackstar, lançado em 8 de janeiro, dia de seu aniversário. E aí vem a inevitável pergunta: existe algum astro da constelação pop que tenha um trabalho tão diverso e com tantos acertos? Não, não existe. David Bowie foi único nessa curiosidade em explorar diversos gêneros musicais e com resultados artísticos muito superiores à matéria-prima da qual se apropriou.

David Bowie não lançava discos, promovia manifestos. Cada álbum era acompanhado por uma nova persona – metodologia que floresceu com Ziggy Stardust, guitarrista espacial que criou em 1973 para o disco homônimo, e foi sucedido por Thin White Duke (o magro duke branco, tipo viciado em cocaína e com tendências nazistas) -, figurinos e gestuais. Pupilo do famoso mímico inglês Lindsay Kemp, Bowie criava cada detalhe de seus personagens e se expressava através de pequenos gestos. Numa das minhas recordações pessoais está a performance de Tellin’ Lies, faixa de Earthling (1997), na qual seus dedos imitavam a língua de uma cobra. Esse perfeccionismo estético foi amplificado graças ao surgimento da MTV, no início dos anos 1980. Foi o veículo ideal para que o cantor inglês externasse sua criatividade, embora os fãs brasileiros tivessem mais familiaridade com sua obra através do Som Pop, antigo programa de videoclipes da TV Cultura. Mais tarde, Bowie iria explorar essa habilidade no teatro e no cinema. Ele viveu John Merrick, sujeito acometido por uma deformidade física que lhe rendeu o apelido de Homem Elefante (Bowie não usava maquiagem, usou suas habilidades para criar o deformado Merrick). Nas telas, o astro inglês foi um vampiro, um ladrão desastrado e até Pôncio Pilatos.

David Robert Jones nasceu no dia 8 de janeiro de 1947. Como todo garoto surgido no período pós-guerra, ele foi infectado pelo espírito do rock ‘n’ roll. Participou de várias bandas, nenhuma delas memorável. A primeira mudança significativa foi no nome. David Jones era também o nome do cantor do grupo pop The Monkees. Ele então se rebatizou como Bowie, nome de uma famosa faca (a título de anedota, criou-se uma lenda que ele teria sido atingido no olho por uma faca Bowie – o golpe dilatou a sua pupila direita). Em Space Oddity, canção que lançou em 1971, ele iniciou a construção de personagens. Bowie era Major Tom, um astronauta perdido no espaço. Vieram então discos como Hunky Dory e Ziggy Stardust e o cantor largou o folk do single de sucesso para explorar o glam rock, a androginia e a bissexualidade. Ziggy Stardust, guitarrista canhoto que veio do espaço, era uma clara homenagem a Jimi Hendrix. Sua música, no entanto, era calcada na sonoridade de Lou Reed e Iggy Pop, ídolos de Bowie. Um dos pontos altos do show era quando ele se lançava sobre a guitarra de Mick Ronson como se estivesse praticando sexo oral. Bowie, por fim, se cansou de Ziggy Stardust e matou o personagem em 1973.

Bowie mudou para os Estados Unidos em 1974, onde gravou Diamond Dogs e Young Americans. A principal mudança estética no seu trabalho, no entanto, se deu na Alemanha, para onde se mudou em 1976 – uma tentativa radical de se livrar de seu vício em cocaína. Ali, Bowie contou com a produção de Tony Visconti e do auxílio do tecladista e produtor Brian Eno para criar a chamada trilogia de Berlim, três discos que namoravam com o rock alemão (representado por bandas como Can e Neu!), mas também apontavam novas alternativas sonoras para o rock, que então dava sinais de desgaste. Bowie passou a fazer experimentos com a música eletrônica e utilizou instrumentos pouco convencionais – caso dos flippertonics, pedais de guitarra criados por Robert Fripp. Por outro lado, essas sessões de música esquisita renderam um de seus maiores sucessos comerciais: Heroes, uma balada sobre dois amantes separados pelo Muro de Berlim. Nas décadas seguintes, Bowie flertou com o estrelato pop. Foi um período marcado pelo sucesso comercial de Let’s Dance, mas abalado pela irregularidade de Black Tie White Noise (1993) e o álbum conceitual Outside (1995). Em 2004, durante a turnê de Reality, Bowie sofreu um ataque cardíaco e abandonou os palcos.

The Next Day (2013), trabalho que marcou seu retorno aos discos, foi antecedido pelo single Where Are We Now, lançado no dia de seu aniversário. Foi surpreendente que numa era em que qualquer ação de um rockstar seja divulgada pelas redes sociais, ele tenha tido a chance de trabalhar em silêncio. Logo depois, soube-se que os músicos que participaram do álbum assinaram uma cláusula de confidencialidade. Essa discrição foi mantida nas gravações de Blackstar e também a respeito de seu estado de saúde. No post publicado nas redes sociais, Tony Visconti, produtor do álbum, deixa claro que a morte de Bowie era uma questão de tempo. O próprio cantor deu pistas sobre isso na música e no clipe de Lazarus, primeira faixa de trabalho do novo e derradeiro álbum. “Olha aqui, eu estou no céu”, canta Bowie, enquanto definha numa cama de hospital. E o Lázaro do título é uma alusão ao personagem do Novo Testamento, que foi ressuscitado por Jesus Cristo.

David Bowie morreu na manhã de hoje após travar por dezoito meses uma batalha inglória contra um câncer (ainda que suas fotos mais recentes e os vocais de Blackstar mostrassem um Bowie saudável e cantando cada vez melhor). Na semana anterior, o mundo perdeu o maestro e compositor francês Pierre Boulez. A passagem da dupla num período tão curto de tempo, de certa forma, prenuncia o fim da música do século XX. Boulez no mundo erudito e Bowie na música e na cultura pop expandiram seus universos, criaram novas escolas sonoras e influenciaram as gerações posteriores – embora Boulez não seja tão presente nas salas de concerto quanto Bowie é nos concertos de rock. Resta saber se há no mundo atual um criador do século XXI que os superem em musicalidade e influência.

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