Sábado, 20 de Abril de 2024
Esportes
27/12/2017 10:42:00
Médicos que liberaram Tifanny acham que ela não deveria atuar no feminino

O Globo/LD

Imprimir

Aos 33 anos, Tifanny Pereira de Abreu é a primeira transexual a disputar a Superliga feminina de vôlei. Mas, depois de completar a transição de gênero, incluindo duas cirurgias de mudança de sexo, e ser liberada pela Comissão Nacional Médica (Conamev) da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), a atacante do Bauru (SP) tem a condição feminina discutida. Isso porque a ciência ainda não é capaz de determinar quanto tempo o corpo precisaria para se adaptar à nova realidade, com testosterona compatível ao corpo de uma mulher. É por esta razão que João Granjeiro, coordenador da Conamev, responsável pela liberação da atleta para a disputa da competição mais importante do vôlei nacional, acredita que Tifanny não deveria atuar entre as mulheres:

— Ela nasceu homem e construiu seu corpo, músculos, ossos, articulações com testosterona alta. Nenhuma mulher, a não ser que tenha usado testosterona de origem externa ao organismo, conseguiria formar o mesmo corpo. É só olhar para a atleta, alta e muito forte.

Granjeiro explica que a autorização da Conamev, concedida em dezembro, tem como base recomendações do Comitê Olímpico Internacional (COI). Tifanny apresentou documentação jurídica (identidade ou passaporte com nome e foto de mulher) e médica (exame dos últimos 12 meses com nível de testosterona abaixo de 10nmol/L ou 288 ng/dL). E essa recomendação, embora ainda não se saiba em que níveis, deve mudar. A entidade divulgará novas diretrizes para atletas que mudam de sexo após os Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, na Coreia do Sul, em fevereiro.

— Ela está liberada para jogar porque está dentro da regra. A regra existe e a obedecemos. Mas esse é um assunto que ainda se discute no meio esportivo. Não está esgotado. Atletas deveriam se manifestar também porque esse é o caminho, o do debate. Não é questão de ser homofóbico ou politicamente incorreto. É um assunto necessário — defende Granjeiro, lembrando que exigirá, a cada dois meses, exame de taxa hormonal da atleta.

João Olyntho, médico da CBV e responsável pela área clínica da Conamev, também é crítico em relação ao tema. Afirma que, se Tifanny apresentar alguma alteração nesses exames, o processo volta à estaca zero.

— Se a testosterona estiver acima desse limite, ela terá de parar de jogar e o processo volta ao início. Terá de apresentar novos exames durante um ano dentro das recomendações do COI. Só depois será liberada novamente — explica Olyntho. — Leva-se em consideração apenas o último ano em relação ao nível de testosterona. Mas e os outros anos todos na vida dessa atleta? Foram 30 anos.

MENINA DESDE NOVINHA

Rogério Friedman, endocrinologista da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), lembra que o tema é delicado e novo. Explica que, para a transformação, é necessária a retirada da glândula que produz testosterona (testículo nos homens). Esse hormônio, que também é produzido pelo ovário e em menor quantidade nas mulheres, potencializa a força e a explosão. Após a cirurgia, a concentração de hormônio cai drasticamente.

— Mas a questão não é a quantidade de testosterona no sangue, requisito em que a jogadora já se enquadra. E, sim, em quanto tempo o corpo vai demorar para se equiparar ao padrão do corpo feminino e como aferir isso. O tema ainda é objeto de estudo — observa ele, ao destacar que homens nascem com características diferentes. — Na história da humanidade, o homem tende a ser mais alto, por exemplo. Isso não é um fenômeno cultural.

Tifanny começou a transição de sexo no início de 2013. Primeiro, tomou hormônios femininos, bloqueadores de testosterona, e, no ano seguinte, submeteu-se à primeira cirurgia. Há sete meses, refez o procedimento porque não havia gostado do resultado. Garante que agora “está maravilhosa”.

Durante o período de transição, chegou a jogar entre os homens, na Holanda e na Bélgica, mesmo já tendo assumido sua identidade feminina. Também já havia atuado na Superliga masculina. Sua primeira partida entre as mulheres foi em fevereiro, na segunda divisão italiana. Tifanny, que se sente “menina desde novinha”, conta que atualmente seu índice de testosterona está em cerca de 34,56 ng/dL, quantidade abaixo da de uma mulher em idade adulta (de 6 a 82 ng/dL). Para homens, essa indicação é de 280 a 800 ng/dL ( Endocrinologia e Diabetes. Ed MedBook, 3ª edição, 2014).

— O ideal é que minha testosterona suba um pouco, mas já sou viciada em anticoncepcional — conta a atacante do Bauru, que, após a cirurgia, tem dificuldade para repetir a performance do masculino. — Penso: “Vou atacar essa bola aqui”, mas meu corpo não consegue. Eu era uma jogadora de força no masculino, mas caí drasticamente. Hoje, sou uma jogadora de força no feminino, como várias outras. Não sou especial, nem algo absurdo.

Reações Contrárias

A estreia de Tifanny provocou reações diversas. A ex-jogadora Ana Paula usou as redes sociais para dizer que é contra a presença dela no vôlei feminino. E afirmou que outras atletas compartilham da mesma opinião, mas não se manifestariam. Na última sexta-feira, quando o Bauru veio ao Rio enfrentar o Fluminense, a atacante ouviu provocações da arquibancada. Torcedores gritaram “saca no Rodrigo”, referindo-se ao nome de batismo.

— Até agora tenho sido bem recebida e não me senti atacada. Enquanto eu estiver dentro da lei, estarei em quadra. Não tem que fazer motim para eu parar de jogar porque não vou. Mas se a regra mudar e eu tiver algum impedimento, coloco minha mão no bolso e vou seguir minha vida normal. Sou mulher trans, antes de ser uma jogadora trans — avisa a jogadora, que acredita que o tratamento hormonal a deixou mais pesada e lenta. — “Volume de corpo” não é tão preponderante. Se fosse, a Sheilla, que é magérrima, não seria uma jogadora excelente. A musculatura serve para prevenir lesões, mas não me torna bruta na quadra. Jogo com o meu talento.

Sheilla, que está sem clube, garante não ter reservas à inclusão da jogadora:

— Não sei dizer se, cientificamente, ela leva alguma vantagem. Isso seria doping. Mas se ela foi liberada, vejo como algo normal.

Integrante do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, no Brasil, Eduardo De Rose reitera que a situação de Tifanny nada tem a ver com doping. Isso porque só é considerado caso positivo quando o atleta apresenta, em exame, a testosterona exógena (não produzida pelo organismo). Casos em que a testosterona endógena (produzida pelo corpo) está elevada, precisam ser avaliados individualmente.

Ele faz questão de diferenciar o caso de Tifanny, que nasceu homem e se transformou em mulher, de casos de mulheres com patologia ginecológica (possuem órgãos genitais de ambos os sexos).

— É preciso levar em consideração vários aspectos pessoais nessas situações. Mas, em geral, a orientação médica é de retirada da glândula (testículo), que pode evoluir para um câncer — explica De Rose, que concorda com Granjeiro na questão fisiológica. — O movimento olímpico não sabe se, mesmo com a retirada da glândula, no caso dos atletas trans, há igualdade na competição. Cada caso é um caso e, por ora, segue-se a recomendação do COI.

CASOS POLÊMICOS ENTRE AS MULHERES

Caster Semenya. A sul-africana de 26 anos é o caso mais famoso de sexualidade contestada no esporte mundial. Bicampeã olímpica e tri mundial dos 800 m, chegou a ser ameaçada de perder seu primeiro ouro (no Mundial de 2009) quando exames constataram características de ambos os gêneros. Ela fez tratamento hormonal, foi liberada pela IAAF para competir, mas ainda é vista com desconfiança por outras atletas.

Edinanci Silva. No Brasil, a história da judoca paraibana, hoje com 41 anos, é a mais conhecida. Como teve sua feminilidade contestada, precisou provar ser mulher para competir na Olimpíada de Atlanta, em 1996. À época, foi identificada como hermafrodita e precisou passar por cirurgia para competir. Conquistou duas medalhas de bronze em Mundiais (1997 e 2003) e dois ouros em Jogos Pan-americanos (2003 e 2007).

Érika Coimbra. Bronze em Sydney-2000, a jogadora de vôlei viveu um dos momentos mais difíceis da carreira em 1997, aos 18 anos, quando um exame detectou excesso de testosterona em seu organismo. Foi cortada da seleção no Mundial Juvenil, e os clubes da Superliga questionaram sua presença na competição. Com má formação dos órgãos reprodutores, foi submetida a tratamento hormonal. Hoje, aos 37 anos, joga no Barueri.

Dutee Chand. A indiana, de 21 anos, foi proibida de disputar os Jogos da Commonwealth (que reúnem os países e territórios da comunidade britânica) e os Jogos Asiáticos, em 2014, após exames apontarem altas taxas de testosterona. Ela recorreu à Corte Arbitral do Esporte (CAS), que lhe deu ganho de causa. Assim, tornou-se, na Rio-2016, a segunda atleta do seu país a disputar a os 100m rasos na , na história.

COMENTÁRIO(S)
Últimas notícias