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ImprimirNa manhã do último dia 8, um homem de 51 anos foi detido após ejacular em cima de uma mulher, em um avião que fazia a rota Belém-Brasília. No mesmo dia, ele foi liberado pela Polícia Civil após prestar depoimento e ser autuado por “importunação ofensiva ao pudor” – uma contravenção punível apenas com multa.
Usando o caso como um dos inúmeros exemplos registrados neste ano, o G1 conversou com o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp sobre crimes sexuais, e sobre a interpretação da Justiça quando não há conjunção carnal (leia entrevista abaixo).
Na visão do jurista, houve “houve violência física e psicológica” no incidente do avião. Por isso, o agressor deve ser julgado pelo crime de estupro, previsto no Código Penal, cuja pena mínima é de seis anos de prisão. Dipp também fala em "complacência do Judiciário em crimes de tamanha barbaridade".
Autuado com base na Lei de Contravenções Penais, o homem responde à Justiça em liberdade. Este caso é semelhante a outros dois que ocorreram em São Paulo ainda neste ano, quando em agosto e em setembro, dois homens também ejacularam sobre mulheres dentro de um ônibus.
No primeiro, o agressor já havia passado pela polícia cinco vezes por suspeita de estupro. Em ambos os casos, os juízes decidiram responsabilizar os agressores por “importunação ofensiva ao pudor”.
Leia, abaixo, a entrevista com o ex-ministro:
G1: Por que este caso deveria ser julgado como estupro?
Gilson Dipp: A violência não precisa ser física necessariamente, basta a interpretação. Como vamos dizer que nesses casos – quando há uma ejaculação no corpo, na mão –, não haja uma violência não só física, como também psicológica?
Este caso não pode ser tratado como mera contravenção penal. Faltou o bom senso.
Não é uma ânsia punitiva, mas uma visão de que a mulher sofre discriminação de gênero em todos os sentidos. Em casos desse tipo, nota-se que há sim uma violência – também física, porque o corpo foi atingido. E é uma violência agressiva que pode deixar danos psicológicos irreparáveis.
G1: Pelo Código Penal, estupro consiste em "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". A pena varia de 6 a 12 anos e pode chegar a 30 quando o estupro resulta na morte da vítima.
Dipp: A gravidade do ato não é de contravenção. Tem que ser colocado no tipo penal adequado. Tem penas altas? Tem. O que pode acontecer é que no julgamento final se aplique a pena mínima (de 6 anos). Não é uma criação fora da lei, é dentro da lei.
G1: No caso do avião, a vítima estava dormindo. Isso seria um agravante?
Dipp: É equiparado ao estupro de vulnerável, porque houve violência não só física, como também psicológica e moral, e ainda em público, o que é muito mais grave.
Ela estava em situação de vulnerabilidade total, dormindo. Foi covardia.
G1: O estupro de vulnerável está previsto no Código Penal para proteger crianças menores de 14 anos. A descrição do ato é a mesmo para adultos, mas a pena é maior – de 8 a 15 anos de prisão.
Dipp: Estou fazendo uma comparação à mulher nessa situação como de vulnerabilidade. Não que vá aplicar isso aqui, porque é para crianças. Mas houve o agravante de que ela estava vulnerável. Isso é muito violento para a mulher psicologicamente.
G1: A pena não seria considerada muito alta?
Dipp: A pena é grande? É. Mas a violência, a forma da prática do ato merece, sim, uma condenação correspondente à gravidade do crime.
Pra mim, importunação ofensiva ao pudor é tudo o que [esse tipo de caso] não é.
G1: Existe um temor do Judiciário em aplicar penas tão altas a crimes que ainda podem ser considerados contravenções?
Dipp: Há um receio do Judiciário e do Ministério Público. Como é muito grande a pena – estupro é crime hediondo –, há uma cultura sexualista e machista na nossa sociedade, e como só agora estão aparecendo essas barbaridades, é evidente que há, sim, no meu modo de ver, uma complacência do Judiciário em crimes de tamanha barbaridade.
Eles [os juízes] afirmam que, nestes casos, a contravenção penal é adequada, porque não houve violência, nem grave ameaça, nem uma violência mediante fraude, que é aquela em que a mulher é enganada para um ato libidinoso.
Violência física não é só agressão. A violência física, e está configurado, é um avanço sobre a pessoa física: ejacular na perna, botar a mão no membro. Isto é violência.
G1: Qual deveria ser a posição do Judiciário?
Dipp: O Supremo não está legislando? Por que o juiz de um tribunal não pode dar uma decisão sempre a favor da mulher?
Nesses casos graves, se o Ministério Público e o juiz puderem enquadrar o fato no crime mais grave, melhor estará se aplicando a Justiça. Nem que, em determinado momento, seja reformado [na lei].
Na dúvida, contra mulher, criança, negro, aplica-se o tipo penal mais adequado. Claro que [o juiz] não vai fazer ilações, mas, na dúvida, tem sim que aplicar o tipo penal mais grave.
G1: A contravenção prevê multa em réis, moeda usada até 1942. Alguém chega a ser penalizado efetivamente?
Dipp: Acaba não recebendo multa. Eu não sei nem se há histórico de condenação pelo tipo da contravenção penal. Não conheço, até porque uma contravenção é tão insignificante para o direito penal... Se houve multa, certamente o sujeito levou uma chamada do juiz e o processo ficou por isso mesmo.
O Supremo [Tribunal Federal] já decidiu, examinando um outro tipo de contravenção, que tanto o tipo descrito na lei quanto a pena eram inconstitucionais. Isso porque a multa se traduzia em réis ou cruzeiros, valores que não têm correspondência aos atuais.
Ora, se já houve a declaração em relação a uma das contravenções penais, pra mim, não há dúvida que [a decisão] se estende a todas as penas de multa em todos os tipos de contravenção. No Rio Grande do Sul, há quase dez anos, o Tribunal de Justiça fez uma equivalência com o “dia-multa”.
G1: O Código Penal e a Lei de Contravenções precisam ser revisados? Os textos são de 1940 e 1941, respectivamente.
Dipp: É preciso que haja uma atualização das normas penais, em especial da Lei de Contravenções, que eu acredito que não tenha mais sentido.
A sociedade evolui, os costumes evoluem na afirmação de gênero, de raça e de cor. Não que haja uma discriminação penal contra qualquer um, mas essa violência física tem que ter uma interpretação consoante à realidade. Atualizar procedimentos que diziam respeito à década de 1940 e que têm que ser aplicados hoje, e projetados para o futuro.
G1: A 'importunação ofensiva ao pudor' seria um crime de estupro com pena mais branda se estivesse no Código Penal?
Dipp: Não. Por isso, há o temor de aplicar como estupro. O Tribunal de Justiça de São Paulo preconiza a criação de um tipo penal intermediário, entre a contravenção e o estupro.
Tudo é possível através do meio legislativo, mas todas as contravenções estão inseridas em qualquer outro tipo penal já existente.
Naquela época [1941], realmente podia ser tido como contravenção penal, porque o grau de lesividade ao Direito Penal era muito pouco. Só não se deixava livre [de qualquer penalidade] para não dizer que estava liberado. Hoje, esses acontecimentos devem ser tratados dentro dos tipos penais existentes.