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03/12/2018 13:39:00
Mais Médicos triplica as vagas de residência em medicina de família, mas dois terços delas estão ociosas

G1/LD

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O programa Mais Médicos, criado em 2013 para suprir o déficit de profissionais na saúde pública e mudar a formação da área, ainda não conseguiu cumprir uma de suas propostas: a de atrair o médico recém-formado para a atenção básica. Dados de um levantamento divulgado no início do ano mostram que a medicina de família e comunidade, especialidade que capacita para o trabalho das vagas do Mais Médicos, é a primeira opção de menos de 2% dos recém-formados.

Uma das consequências dessa falta de interesse é que, em 2017, cerca de dois terços das vagas de residência oferecidas na área não foram preenchidas, segundo um cruzamento de dados do G1 entre os resultados do estudo e números oficiais divulgados pelo Ministério da Educação.

Coordenado por um professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o estudo "Demografia Médica no Brasil 2018" ouviu 4.601 médicos formados entre 2014 e 2015. Para esta pergunta sobre residência, 3.441 apontaram suas preferências e somente 58 médicos recém-formados (1,68%) disseram que queriam se especializar em medicina de família.

No início do Mais Médicos, a medicina de família representava apenas 6,2% das vagas de residência. Segundo dados obtidos pelo G1 junto ao MEC, desde 2013, o número de vagas autorizadas mais que triplicou: foi de 991 vagas anuais em 2013 para 3.587 em 2018.

Passados mais de cinco anos desde o anúncio do programa, o G1 analisa, em uma série de três reportagens entre o domingo (2) e a terça-feira (4), o impacto da iniciativa na formação de médicos no Brasil. A formação médica no Brasil

Após passar pela graduação, que dura seis anos, o médico recém-formado pode optar por seguir para a residência médica, se especializar na área acadêmica, com cursos de mestrado e doutorado voltado a pesquisas, ou atuar imediatamente como médico – nesse último caso, o Brasil segue caminho contrário a muitos países, como o Canadá, que só permitem que um médico trabalhe sem supervisão após a conclusão da residência.

O estudo sobre a demografia médica mostra que fazer a residência é a opção de 2.579 entrevistados (80,2% dos 3.463 que responderam a esta pergunta).

No entanto, entre as 23 residências com acesso direto para os graduados, a formação específica em medicina de família é a 12ª mais apontada como primeira opção pelos 3.441 entrevistados. O que faz o médico de família?

A medicina de família e comunidade atua na área de atenção básica de saúde, que é quando a população é acompanhada por um médico que atua como "coordenador" do cuidado do paciente, e tem uma visão completa da saúde dele. É atualmente a área prioritária que levou à criação do Mais Médicos, porque é uma das que mais precisa de expansão de profissionais.

Ao mesmo tempo em que foi anunciado para contratar médicos formados no exterior para preencher esse demanda em caráter emergencial, o Mais Médicos também pretendeu repensar a formação de médicos no Brasil e resolver o problema de forma permanente.

Depois que a medida provisória do Mais Médicos foi publicada, em julho de 2013, a comissão de especialistas do Ministério da Educação (MEC) se reuniu para propor caminhos para executar a reforma. A sugestão, que consta na ata de uma reunião realizada em 25 de julho daquele ano, foi uma expansão ousada do número de vagas de residência em medicina de família.

"Estratégias deverão ser desenvolvidas para o fortalecimento da Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade, devendo, até 2017, as vagas para essa especialidade representarem 40% das vagas totais de Residência Médica oferecidas", diz a ata da comissão de especialistas no ensino médico do MEC sobre o programa Mais Médicos.

Nathan Mendes, professor do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que a meta de 40% está de acordo com o atual consenso internacional, que indica a necessidade de que de 30% a 50% de todos os médicos de um país serem especialistas em medicina da família.

"O Brasil tem cerca de 6 mil médicos de família e comunidade no Brasil. Somente para a assistência, ele precisaria de 40 mil a 45 mil médicos", afirmou ele. Vagas ociosas

Cármino Souza, professor de medicina há 40 anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems-SP), afirma que não só a expansão não ocorreu no ritmo esperado e necessário para cumprir a demanda, como também os programas não foram capazes de atrair médicos suficientes para ocupar as vagas.

Se forem analisadas as vagas de fato preenchidas, o cenário é pior: segundo o estudo, só 1.043 estavam ocupadas por um residente de primeiro ano, o que significa uma taxa de ociosidade de cerca de dois terços. Especialidade desvalorizada

Nathan Mendes, da UFMG, afirma que um dos problemas por trás dessa falta de interesse é o fato de que os médicos de família não são valorizados socialmente.

"Alguns países já conseguiram esse êxito da valorização social da medicina de saúde e dos profissionais que nela trabalham. Não só médicos, mas enfermeiros, biomédicos, e outros profissionais, da psicologia, da fisioterapia."

Segundo ele, outros países adotaram uma série de estratégias para atrair os egressos das faculdades de medicina à especialidade, como um complemento financeiro na bolsa de residência e privilégios salariais para quem decide seguir nessa área.

No Brasil, algumas estratégias incluem bônus na nota da prova de residência para os estudantes que atuaram na atenção básica. Mas, segundo Mendes e Nildo Alves Batista, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), a iniciativa teve efeito limitado porque, após o cumprimento da carga horária mínima na atenção básica, os médicos usam o bônus para serem aprovados em programas de residência de outras especialidades, e abandonam a área.

Cármino Souza explica que muitas pessoas consideram a medicina de família menos complexa que outras especialidades, mas que isso é um mito.

"O generalista [de medicina da família] tem que ter bons conhecimentos de muita coisa para saber diagnosticar. Uma coisa é formar um médico voltado à atenção básica, a outra é ter uma formação dentro do ambiente hospitalar, com muitas especialidades" - Cármino Souza, presidente do Cosems-SP.

Demanda no mercado

Já Mendes lembra ainda que, no Brasil, há espaço para absorver todos os novos especialistas em medicina de família, não só nos postos de saúde, mas também em outros cargos.

O motivo, segundo ele, é o aumento da percepção, com base em pesquisas, de que a atenção primária de saúde, quando é o centro do atendimento ao público, torna o sistema de saúde mais eficaz e econômico. Por isso, até os planos de saúde têm aderido a programas coordenados por médicos de família.

"Nos últimos dez anos, a saúde suplementar tem comprado a ideia de que a atenção primária em saúde agrega muito em valor, porque evita que muitos especialistas focais atendam a mesma pessoa, mas cuidando só de órgãos, com um olhar fragmentado das pessoas" - Nathan Mendes, professor da UFMG

Problemas estruturais

Arthur Danila, ex-presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR), ressalta que, além da demanda por profissionais e do interesse dos estudantes, a meta de 40% das vagas de residência em medicina da família está longe de ser cumprida porque também enfrenta problemas de infraestrutura.

"Só aumentou para 13,8% porque, possivelmente, não conseguiram encontrar estrutura mínima [espaço físico e professores supervisores preparados] para expandir mais do que isso", disse ele.

Ao G1, o MEC explicou que "o tema está sendo rediscutido tanto no MEC quanto no contexto do Mais Médicos".

Segundo o ministério, "a residência médica é uma formação em serviço, o que significa dizer que é o momento em que há a necessidade da prática médica sob supervisão, com atendimento real a pacientes da rede pública. Assim, a prática médica está diretamente associada à infraestrutura do sistema de saúde e da rede de assistência, cujas dificuldades e barreiras também afetam a formação ou permanência dos residentes nos programas".

A nota diz, ainda, que a moratória imposta pelo MEC para novos cursos de medicina vigora "enquanto o MEC busca políticas de atração para combater a ociosidade das vagas de residência atualmente oferecidas".

De acordo com Danila, a falta de estrutura não é só um impedimento para a oferta do programa, mas também para a atração de candidatos.

Os dados da "Demografia Médica no Brasil 2018" mostram que as condições de trabalho são consideradas por 84% dos recém-formados como critério importante para permanecer em um local de trabalho. A porcentagem é mais alta inclusive que o salário, citado por 63,1% dos entrevistados (a pergunta permitia mais de uma resposta).

"Isso significa que os médicos não estão se sentindo atraídos para ir para essa área porque, possivelmente, não encontram estrutura e não acham que vão ter condições de trabalho e aprendizagem adequadas. Não adianta abrir um montão de vagas se já tem ociosidade nestas vagas que estão abertas" - Arthur Danila, ex-presidente da ANMR

Universalização da residência médica

O problema estrutural, porém, não é exclusivo da residência de medicina de família. Segundo os dados do MEC, entre 2013 e 2017 o número de vagas autorizadas por ano subiu de 15.960 para 24.807, o que representa uma ampliação de 8.847 vagas (55,43%).

Já os números do Censo Superior da Educação mostram que, nesse mesmo período, o número de concluintes de medicina subiu menos, de 16.425 para 17.130. No entanto, esta expansão ainda é alvo de críticas.

"Estes números mascaram a realidade", diz Danila. Se em 2013 havia 16.425 concluintes em medicina, segundo o MEC, e um total de 15.960 vagas autorizadas em residência, isso não significa que todos os concluintes teriam acesso a estas oportunidades. Isso acontece porque, mesmo que o número de vagas das residências seja maior do que o número de concluintes, vários programas não podem ser acessados diretamente pelo recém-formado porque exigem que outras residências sejam feitas antes.

"Há especialidades de acesso direto e outras que precisam ser feitas em duas etapas", explica Danila. "Se eu quiser me especializar em endocrinologia, ela [a residência] só pode ser feita depois de dois anos de residência em clínica médica, e após ser aprovado em uma prova."

Nathan Mendes, professor da UFMG, lembra ainda que a expansão das vagas em residência tem que seguir as necessidades epidemiológicas da população brasileira.

"Se você deixa isso solto, pode causar graves distorções, como ter excesso de alguma habilidade e poucos especialistas em outra área."

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