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23/06/2017 14:04:00
Streaming: músicas brasileiras mais tocadas em 2016 renderam em média R$ 400 por mês a autores

O Globo/LD

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Mesmo quem não é fã de sertanejo ouviu, em algum momento de 2016, Maiara amp;amp; Maraisa pedindo ao garçom para trocar o DVD, “que essa moda me faz sofrer/ e o coração não guenta”. Ou Jorge amp;amp; Mateus anunciando que sossegaram, Matheus amp;amp; Kauan explorando o verso branco na metalinguagem romântica do refrão “O nosso santo bateu/ O amor da sua vida sou eu/ Tudo que é meu hoje é seu/ E o fim nem precisa rimar” e Projota descrevendo a menina que é “uma letra do Caetano com flow do Racionais”.

As canções citadas — respectivamente, “10%”, “Sosseguei”, “O nosso santo bateu” e “Ela só quer paz” — estão entre as dez músicas brasileiras mais tocadas de 2016 em plataformas de streaming, como Spotify, Deezer, Napster e Apple Music. Apesar da onipresença, os serviços de streaming repassaram em direitos autorais aos compositores dessas músicas R$ 46.199,20 — o que daria uma média aproximada de R$ 400 para cada canção por mês, sendo que algumas delas chegam a ter cinco autores.

Para efeito de comparação, as dez músicas que mais tocaram no rádio em 2016 renderam R$ 1.567.761,06 — quase 34 vezes mais dinheiro que a arrecadação do streaming.

Os valores — reforçando, referentes aos maiores hits do ano nas plataformas — chamam a atenção para a questão da remuneração dos serviços de streaming. Está aí o nó central da tecnologia que hoje é o grande lastro do mercado fonográfico, como mostrou o balanço de 2016 divulgado recentemente pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) e pela Pro-Música (antiga Associação Brasileira de Produtores de Discos) — o crescimento mundial do setor em 5,9% foi puxado pelo streaming pago, que registrou um aumento de 60,4%.

O dinheiro que o streaming movimenta ainda não se mostrou suficiente para sustentar toda a cadeia, como na era dos discos físicos — a assinatura que dá acesso a um acervo de 30 milhões de músicas custa cerca de R$ 15, valor menor do que o de um único CD.

— Fizemos uma atualização do sistema do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) para poder trabalhar com os valores do streaming — explica Glória Braga, superintendente do Ecad. — Tivemos que adaptá-lo para oito casas decimais, quando antes só trabalhávamos com duas, ou seja, o valor mínimo recolhido era de um centavo. Agora, tem artistas que recebem R$ 0,00000001. Temos que esperar juntar um centavo para ser possível o pagamento. Porque se os dez mais tocados recebem esse valor, imagine aqueles que tocam poucas vezes?

Paulo Rosa, presidente da Pro-Música, atribui os valores atuais ao fato de o modelo do streaming (seja o pago com assinaturas mensais ou com publicidade) ainda ser novo, “embora desponte como sendo o segmento digital com mais potencial para o futuro do mercado”:

— Apesar disso, os recursos gerados pelo mercado de streaming no mundo todo e também aqui no Brasil ainda são muito reduzidos para remunerar as dezenas de milhões de gravações musicais que tocam nestas plataformas. A consequência é que, sob a ótica individual de um autor ou mesmo de um artista, os valores gerados pelo streaming são, de uma forma generalizada, percebidos como insatisfatórios. Na opinião da Pro-Música, trata-se nitidamente de um problema de escala de volume: o streaming para firmar-se como modelo depende de um contínuo crescimento de sua principal fonte de receita, a base de assinantes, principalmente. Até fins de 2016 haviam apenas 112 milhões de assinantes em todo o mundo, o que deixa claro que o potencial de crescimento, tanto mundial como no Brasil, é imenso e quase ilimitado.

Integrante do GAP (Grupo de Ação Parlamentar, criado para atuar por mudanças legislativas para as questões do setor da música), o compositor Leoni acredita que o aumento da base de assinantes é importante, mas não é suficiente:

— Não é só a base que tem crescer, tem que mudar a distribuição também. A gente sabe, ou intui porque os valores não são revelados, que as gravadoras estão comendo o pedaço maior do bolo. Só crescer o bolo não vai alterar isso — argumenta, acrescentando que é necessário atentar para a legislação. — Antes da queda do governo Dilma, tínhamos a Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI), que propôs uma regulamentação de todos os direitos envolvidos no meio digital. O fim da diretoria, com a chegada de Temer, fez com que essa discussão fosse abortada. Ficamos, compositores e músicos, desprotegidos porque a Cultura passou a ser algo de quinta importância.

A produtora Paula Lavigne, diretora-presidente da Associação Procure Saber, também vê injustiça no sistema:

— Os nós são muitos. Antes, o preço era negociado pelos autores e artistas com os usuários, agora são impostos pelas plataformas aos criadores. O segundo nó é que essas plataformas negociam globalmente com as gravadoras, em acordos que são confidenciais. As gravadoras trabalham com modelos de contratos já prontos, ou o artista assina ou não tem negócio. O filé certamente não fica para o autor nem para o artista — diz Paula, lembrando também a proposta de regulamentação da DDI. — Como se trata de um a proposta de Estado e não de governo, esperamos que ela não seja abandonada. A solução para esse problema tem que vir de uma regra internacional que seja seguida por todos os países. Esse mercado não pode se autorregular.

Outro fator que impacta os direitos autorais é a inadimplência. Glória Braga explica que plataformas como YouTube e Deezer não pagam os direitos autorais ao Ecad (outras, como Spotify, Apple Music e Vevo pagam normalmente). Há acordos diretos com as gravadoras, que têm a responsabilidade de repassar aos intérpretes, mas não aos compositores e músicos, remunerados pelo Ecad.

— A alegação das empresas inadimplentes é que os direitos autorais têm que ser pagos sobre execução pública, e suas plataformas não configuram execução pública — conta Glória. — Mas essa questão jurídica foi superada numa decisão do STJ de fevereiro, a respeito de uma ação antiga que tínhamos contra a Oi FM, sobre esse tipo de serviço ser execução pública ou não. O STJ decidiu que sim, e a partir disso voltamos a entrar em negociação com Deezer e Napster, e estamos avançando. Mas o YouTube segue sendo uma pendência, inclusive mundial. Mesmo as gravadoras, que recebem dele, estão reclamando.

Glória se refere às cobranças que o YouTube vem sofrendo em diversos países com relação ao chamado “value gap”. O termo se refere à diferença entre o que usuários de serviços como YouTube (de conteúdo gerado pelos próprios usuários) consomem de música ali e o que eles retornam em dinheiro para o mercado. Os números do relatório da IFPI expõem isso claramente: enquanto 212 milhões de usuários de serviços de streaming como Spotify e Deezer geram R$ US$ 3,9 bilhões de receita, os 900 milhões de pessoas que consomem música no YouTube rendem US$ 553 milhões.

Recentes movimentos do gigante YouTube parecem anunciar que ele está mudando sua estratégia. Na últimas semana, dia 13, foi divulgado um acordo entre a empresa e a Sociedade Americana de Compositores, Autores e Editoras para garantir um pagamento mais justo de direitos autorais por parte da plataforma. A ideia é que ambos atuem juntos para identificar os autores das músicas executadas ali. É a primeira vez que o YouTube faz um acordo voluntário com representantes dos compositores, sem passar pelos tribunais.

Ano passado, o Spotify também fez acordos do tipo, depois de estrelas da música americana terem ameaçado tirar canções da plataforma. A empresa também atravessa um momento importante: segundo o site “The information” noticiou em maio, antecipando dados ainda não divulgados oficialmente, a empresa teve em 2016 um prejuízo de US$ 330 milhões, mais do que o dobro de 2015 (o que não a impediu de ter um aumento de 50% no faturamento e apresentar o maior valor de mercado de uma empresa europeia, US$ 13 bilhões). A empresa não quis se pronunciar para esta reportagem, assim como o Deezer.

Atualmente, há uma ação do Google (proprietário do YouTube) contra o Ecad, em tramitação na Justiça brasileira, sobre que porcentagem do valor da publicidade vinculado a cada clipe os autores teriam direito. O escritório de arrecadação perdeu na primeira instância , mas recorreu.

Um dos compositores no top 10 nacional de 2016, Projota acredita que as plataformas deveriam se dispor a conversar com os artistas para repensar suas bases:

— Difícil achar justo (o sistema de pagamento de direitos do streaming) quando não temos um controle e muito menos uma negociação justa. Os serviços simplesmente existem, a indústria se formou, e nós artistas não tivemos direto de opinar sobre o que seria o justo. Ou nos adaptamos ao momento ou não divulgamos nossa música. De deveríamos voltar ao esqueleto do processo e estruturá-lo novamente em conjunto. A opinião dos artistas tem que ser relevante. Já ficou comprovado que tudo é um ciclo, um estado momentâneo. Não é garantido que as coisas fiquem como estão, novas tecnologias e possibilidades podem surgir, e os representantes das plataformas de streaming deveriam entender isso, que talvez não seja tão difícil surgir uma nova fórmula de distribuição de música.

Assim como a Pro-Música, o Ecad acredita no fortalecimento do modelo. E que a realidade “toma aqui uns R$ 400” — referência ao verso de “50 reais” outro hit sertanejo, de Naiara Azevedo com participação de Maiara e Maraisa — é uma fase, um período de ajuste do mercado.

— A nossa visão é que vai melhorar, acreditamos que o futuro é o streaming — diz Glória. — O necessário agora é que os inadimplentes comecem a pagar, aguardamos também o crescimento do número de assinaturas,. E talvez mesmo repensar essa divisão dos valores referentes à execução pública.

É a expectativa dos compositores — os do R$ 0,00000001 mais do que os dos R$ 400.

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