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Artigo
07/04/2020 11:03:00
Vacância de poder

Carlos José Marques

Foto: EFE/ Joédson Alves

Jair Messias Bolsonaro já não governa o País. Está a reboque das decisões. Tutelado por forças institucionais, inclusive militares, que determinam a ele o que e como fazer — alinhamento a governadores, foco nas medidas econômicas e menos estardalhaço circense, essa última orientação difícil de cumprir dada sua natural vocação ao papel de palerma descompensado.

Não são meros conselhos, mas alertas que ele vem recebendo agora diariamente, sob pena de ser apeado da cadeira o quanto antes. Congresso, Judiciário, governadores, prefeitos, OMS, políticos em geral, além das Forças Armadas, já iniciaram uma reação em cadeia contra o Planalto.

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, habilitou-se ao papel de bombeiro e se credencia, cada dia mais, à condição de líder no comando. Em clara reprovação às palavras de ordem do capitão, alinhou-se àqueles que rebatem em público os desatinos do chefe. O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) pedido de afastamento de Bolsonaro.

Sua petição, protocolada na Corte no último dia 25, vem se somar a outros cinco requerimentos no mesmo sentido. No Parlamento, o impedimento do chefe da Nação, por atos e palavras que caracterizam infrações em série à “lei de responsabilidade social”, virou voz corrente. Trata-se agora de acertar quando e como fazê-lo. A preservação da democracia é o pilar que sustenta o movimento. Fecha-se o cerco contra a desordem voluntariosa de Messias. É preciso resgatar a estabilidade maculada por quem tem apostado na ruptura e no confronto — inclusive com integrantes e subordinados do próprio governo — para buscar soluções autoritárias.

Jair Bolsonaro, que nunca deixou de flertar com a ditadura, elogiar notórios torturadores e adotar a tática de converter em inimigos, traidores, qualquer um que atravesse o seu caminho, persegue, é fato, o inconfessável projeto de poder totalitário. Indagado recentemente em um programa de televisão se estaria disposto a dar um golpe, evitou negar de maneira categórica e saiu-se com o enigmático enunciado do “quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar”.

Ao contrariar a unanimidade nacional e do planeta no monumental desafio do confinamento para conter a doença, e assim minimizar perdas humanas e econômicas, Bolsonaro o faz de caso pensado. Aposta no caos para consagrar o maquiavélico ardil de projetar-se como salvador de uma pátria em ruínas.

Ao final e ao cabo, imagina jogar no colo dos adversários a culpa pela recessão que avança a galope no lombo da covid-19. Tenha certeza: ele não está preocupado com a normalidade do mercado, muito menos com a ameaça à vida de quem quer que seja. Ao falar em interromper o isolamento por decreto (e foi alertado pela Justiça que não conseguiria levar adiante a ideia) e alegar que “infelizmente, algumas mortes ocorrerão, paciência!”, o mito das falanges milicianas move peças do tabuleiro, à sua maneira trôpega, levado tão somente pela obsessão cega da reeleição. Irresponsabilidade é a palavra que lhe cabe.

Declarações como a de uma “mera gripezinha, que brevemente passará” ou a de que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque”, superam a classificação de arroubos disparados ao léu. Fazem parte de um mosaico de demagogias, um script calculado, onde o argumento econômico serve apenas de instrumento para concretizar as ambições pessoais. Seriam os “moleques” as autoridades que, teoricamente, atrapalham o roteiro de estultices para asseverar 2022.

Já o “homem”, ele, atleta e mito, destemido, sai às ruas, desrespeitando as regras e pondo em ameaça os próprios seguidores, porque é o herói redentor blindado, capaz de denunciar a existência de uma “histeria”, sem apresentar um único argumento técnico para ir na contramão das medidas tomadas no planeta. Dias atrás, na manobra mais arriscada, antes mesmo do desastrado pronunciamento em cadeia de rádio e TV onde incitava o rompimento da quarentena, Bolsonaro tentou cerrar fileiras com a caserna para conquistar, quem sabe, o aval a uma perigosa aventura de atropelo à Constituição.

Foi pensando nisso que falou em “flexibilizar” as regras de isolamento. Adiantando-se a ele, e assim sinalizando que os quartéis não compactuariam com a quebra da ordem, o comandante Edson Leal Pujol postou um vídeo nas redes sociais do Exército falando que os militares estavam a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus. Foi um balde de água fria no intento do capitão. Em poucas horas, o vídeo alcançava 500 mil visualizações, em especial entre membros da tropa, formada por recrutas de baixa renda preocupados em atender as medidas sanitárias deliberadas pelas autoridades.

Bolsonaro não se deu por vencido e, naquela mesma noite da divulgação do vídeo de Pujol, insistiu em aparecer fazendo o comunicado elaborado com a ajuda dos filhos. Os ministros militares do Palácio do Planalto desaconselharam o pronunciamento em tom provocativo e evitaram participar da sua feitura e gravação.

O presidente não recuou. Foi adiante, não medindo consequências. Novamente, por opção própria, ficava mais uma vez sozinho e ridicularizado nos devaneios. Diante de tantos tropeços, hoje ele parece governar apenas no seu ambiente digital, habitado pela corriola de seguidores fanáticos. Ao tencionar relações com todos os demais poderes, aliados e mesmo apoiadores, perdeu rapidamente sustentação e não é levado a sério em nenhum círculo de Brasília.

Governa como rainha da Inglaterra, sem influência e com baixa capacidade decisória. Tentou uma derradeira empreitada com uma campanha publicitária de mau gosto, elaborada às pressas pela Secom, na qual entoava o mantra de “O Brasil Não Pode Parar”. Queimou mais de R$ 4,8 milhões nas esquetes – no momento em que a estrutura médico/hospitalar necessita vitalmente de recursos — e buscou distribuí-los nas redes sociais, via robôs.

Foi logo tolhido pela Justiça, que proibiu a circulação da campanha. Humilhação maior ainda estava por vir. O Facebook, o Instagram e o Twitter, em simultâneo, decidiram retirar do ar, como forma de censura, alguns de seus posts, por distorcerem orientações oficiais de segurança sanitária consagradas no mundo. O capitão acabou por virar uma ameaça. O sisudo jornal britânico “The Guardian” apontou em editorial que Bolsonaro representa atualmente um “perigo para os brasileiros”.

A revista americana “The Atlantic” o classificou como “o líder mundial da negação do coronavírus”. O semanário “The Economist” deu a ele a alcunha de “Bolsonero”, em alusão ao polêmico imperador que mandou incendiar Roma, enquanto o “The Washington Post” pediu abertamente em artigo o seu impeachment. Virar chacota global não parece ser um problema.

Não pense que ele se incomoda com isso. No estilo tosco e desenfreado, que lhe é característico, deve estar até achando boa a notoriedade, mesmo que na condição de pária do mundo. Desalento e vergonha destruindo a autoestima nacional. O mais grave no espetáculo bizarro de desvarios do mandatário é que ele, decerto, se converteu numa ameaça pública, afrontando às orientações de especialistas de saúde e pondo em risco à vida daqueles que eventualmente pensam em seguir os seus conselhos.

Ao instigar a desobediência civil contra o isolamento, Bolsonaro demonstrou que precisa ser contido o quanto antes pelas forças republicanas. Extrapola os poderes de um chefe de Estado, se comporta como líder de seita e seus crimes atravessam a esfera política para alcançar o plano de atentado à humanidade.

Credenciais mais do que suficientes para encarar não apenas um processo de impeachment, já dado como inevitável mais cedo ou mais tarde, como também ações nas cortes internacionais, de Haia e mesmo da ONU, onde já vem sendo denunciado. A expectativa é que, daqui por diante, um núcleo de governabilidade seja montado para a travessia desse período turbulento, enquanto se aguarda a sua retirada.

Este é um artigo reproduzido da Revista IstoÉ, assinada pelo jornalista Carlos José Marques diretor editorial da Editora Três.