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24/08/2022 10:18:00
Em 33 anos de lei, MS tem apenas um réu por racismo, mas centenas de denúncias

Correio do Estado/LD

Apesar das 107 ocorrências de racismo registradas pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) desde 2012, o único caso existente, em que o suposto agressor tornou-se réu, ou seja, em que houve uma ação penal catalogada no sistema e-SAJ do Tribunal de Justiça do Estado (TJMS), é o do candidato a deputado estadual Rafael Brandão Scaquetti Tavares (PRTB), que ocorreu em 2018, mesmo com a Lei do Racismo existindo há 33 anos.

Tavares foi o primeiro caso de racismo em Mato Grosso do Sul. De acordo com o TJMS, desde então, não houve nenhum outro réu.

Quanto aos casos de injúria racial, que consta no artigo 140 do Código Penal Brasileiro, também não há registros catalogados no mesmo período no Tribunal de Justiça.

O caso de Tavares segue aberto na 2ª Vara Criminal de Campo Grande. No início de agosto deste ano, o juiz responsável intimou as testemunhas para deporem contra o réu.

O candidato foi acusado de crime de racismo propriamente dito, manifestado na forma de crime de ódio (imprescritível) contra negros, gays e japoneses, em uma página na rede social, na qual afirmou que faria uma “limpeza étnica”.

“Já montamos um grupo no WhatsApp e vamos perseguir os gays, os negros, os japoneses e os índios, não vai sobrar ninguém. Estou até pensando em deixar meu bigode igual do Hitler”, disse o ex-candidato, agora “ativista pró-Brasil”.

Na época, ele se defendeu declarando que usou ironia para criticar acusações de que o atual presidente do Brasil era a favor da violência contra minorias.

De acordo com o departamento de Segurança Pública, o número de registros de racismo é gradativo e crescente. Em 2012, de janeiro a julho, por exemplo, foram contabilizadas seis ocorrências no Estado. No ano seguinte, foram 9, no mesmo período. Já em 2014 o número subiu expressivamente para 17 ocorrências.

Quatro anos depois, em 2018, o número caiu para 7. Em 2019, aumentou novamente, para 13. E este ano, de janeiro a julho, foram registradas 12 denúncias.

As notificações expressam avanços a respeito do tema e coragem das vítimas em registrar boletins de ocorrências, mas, em contrapartida, exprimem a perpetuação do crime no Estado, visto que ainda existem casos.

A presidente da Comissão de Igualdade Racial (Comir) da OAB-MS, Silvia Constantino, ressaltou que as pessoas estão tendo mais consciência sobre os crimes, em virtude do número de vítimas que denunciam seus ofensores.

“Agora, cada vez mais as pessoas estão tendo o entendimento e a noção de que isso é crime e de que elas precisam denunciar. Quando são xingadas ou sofrem algum tipo de preconceito, as pessoas já entendem que elas têm um direito e que precisam ser respeitadas. Então, a partir disso, elas começam a fazer a denúncia. Sem dizer que hoje nós temos na palma da nossa mão um instrumento que faz com que se tenha provas, e isso é importante. Se você não tiver provas o suficiente, fica ainda mais difícil de se provar o tipo de crime”, pontuou.

Constantino explicou que há muita confusão sobre os termos racismo e injúria racial, ou discriminação racial. O primeiro consiste em conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. Nesses casos, cabe ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor.

Já a injúria racial, ou discriminação racial, está associada ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou à cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Aqui, cabe ao padecedor prosseguir ou não com a denúncia.

Constantino ressaltou um problema que, segundo a advogada, influencia no número de inquéritos registrados: tipificação adequada no ato do registro da denúncia.

“Muitas vezes, é desqualificado o crime. Por exemplo, uma injúria racial, a unidade policial não entende que é racial e acaba tipificando como injúria normal. Então acaba caindo essa conotação do racismo. Eu penso que, muitas vezes, é por falta de conhecimento. O sistema judiciário ainda precisa se capacitar para essas questões raciais, porque é importante que haja uma sensibilidade. Por isso o inquérito não vai para frente e, se ele não prossegue, não existe ação”, pontuou.

Procurado pelo Correio do Estado, o candidato a deputado estadual Rafael Brandão Scaquetti Tavares disse que o processo é “uma fake news”.

“Fiz um comentário irônico, brincando com um colega no Facebook. Alguém, de forma anônima, recortou meu comentário e tirou de contexto me acusando de crime de ódio. Uma piada mal-entendida. Nunca pratiquei racismo e nenhum tipo de preconceito”, pontuou.

INJÚRIA RACIAL Como já publicado pelo Correio do Estado, o número de crimes de discriminação racial cresceu 30% em Mato Grosso do Sul nos primeiros sete meses deste ano em relação ao ano passado. Os casos saltaram de 169 em 2021 para 221 em igual período deste ano.

Neste mês, o Estado teve três episódios de injúria racial que tiveram grande repercussão midiática. Um deles é do professor, mestre em Bioquímica e doutor em Ciências da Saúde Sikiru Olaitan Balogun, 48 anos, agredido junto do filho, de 6 anos, por um casal de idosos em um supermercado atacadista de Dourados.

Em entrevista ao Correio do Estado, o professor ressaltou os reflexos do preconceito. “Somos seres humanos. Eu não escolho a cor da minha pele, eu nasci com aquilo. Será que faz sentido que condenemos alguém por isso? Isso não leva a nada. Só mostra o quão ruim é dentro da pessoa. Tem que respeitar a dignidade humana, é isso que cada humano deve para o outro, dignidade”, evidenciou.

O professor acrescentou que o sentimento da injúria racial é algo indescritível. “É uma coisa que cresce por dentro, não tem como descrever a dor”, finalizou.

O segundo caso foi o do Alagoano Jonathan David Gomes dos Santos, 25 anos, jogador profissional de vôlei de praia. Ele foi anunciado por um narrador, durante a partida de vôlei em Maracaju, no interior do Estado, no sábado (13), com termo preconceituoso.

“Agora, eu quero chamar o monstro. Saiu da senzala, é ele, Jonathan”, disse o narrador do evento referindo-se ao atleta.

O Correio do Estado falou com o atleta e ele contou que em nenhum momento durante a partida o narrador se desculpou pelo ato. “Eu saí arrasado, não conseguia nem raciocinar bem. Falei para minha namorada que não queria que ninguém soubesse, que era para deixar para lá. Fiquei muito envergonhado, nunca tinha passado por isso, já viajei quase o Brasil todo”.

Para Jonathan, o momento foi desolador. “Na hora, eu fiquei tão constrangido que eu não queria que ninguém tivesse escutado. Então olhei para o lado, para a torcida, vi que as outras pessoas escutaram também. Só que passa batido. Está ficando muito comum as pessoas falarem isso”, relatou.

O jogador categoriza o ato como falta de respeito. “Eu acho que respeito é essencial para tudo. Eu tenho uma irmãzinha de 9 anos e, se isso fosse com ela, eu surtava. Eu tenho mais força do que ela, mas, se fosse com ela, eu não aguentaria, não. As pessoas deveriam ter mais respeito umas pelas outras, não só porque sou negro, injúria de negro, mas para qualquer tipo de injúria”.

ÚLTIMO CASO

Neste sábado (20), um funcionário da Loja Paris 6, localizada no Shopping Campo Grande, agrediu um prestador de serviços em um banheiro masculino, no piso superior do centro comercial. A violência aconteceu após o funcionário ter se incomodado com servidor e se recusado a dar descarga em dejetos.

A vítima trabalha na limpeza e contou à polícia que o homem a chamou de “preto fedido”, a jogou no chão e deferiu chutes nas pernas, após ser perguntado, pela demora, se estava bem. O caso foi registrado na Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário (Depac) como vias de fato e injúria qualificada pela raça, cor ou origem.

Em sua defesa, o suspeito afirmou ao delegado que desferiu alguns socos no rosto da vítima e, ainda, a empurrou. Entretanto, ressaltou que em nenhum momento fez injúrias raciais contra o prestador de serviços.

SAIBA

A Lei nº 7.716, instituída em 1989, é conhecida com Lei do Racismo e pune todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Já a injúria racial está amparada pelo 3º parágrafo do artigo 140 do Código Penal Brasileiro.