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11/02/2018 08:28:00
'Tombamento não é desculpa', diz Iphan sobre queda de viaduto no DF; leia entrevista

G1/LD

O desmoronamento de um viaduto na área central de Brasília, na manhã da última terça-feira (6), não expôs apenas as rachaduras no concreto armado e nas ferragens do Eixão Sul. A falta de manutenção sistemática na infraestrutura da capital, o empurra-empurra entre os gestores e a deterioração da capital mais jovem da América do Sul vieram à tona de imediato, antes mesmo do início das obras de reconstrução no local.

No caso do Plano Piloto, toda essa discussão está sujeita a um fator ainda mais complexo: o tombamento do conjunto urbanístico de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade. O título da Unesco completou 30 anos em dezembro mas, para além do status e da poesia, impõe uma série de restrições e obrigações ao poder público.

No Brasil, o respeito ao tombamento – e à preservação desse legado – é fiscalizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Superintendente do órgão no DF desde 2014, Carlos Madson Reis refuta a ideia do tombamento como um "peso", e diz que não há desculpa capaz de justificar o descaso com a manutenção regular e efetiva das obras da capital.

"O tombamento não é uma camisa de força, e não pode virar fetiche", afirmou o gestor, em entrevista ao G1 na última sexta-feira (9). Segundo ele, a dificuldade do país em dar um passo civilizatório rumo à gestão urbana eficiente custa dinheiro aos cofres públicos, e faz com que as cidades brasileiras corram riscos desnecessários.

O viaduto que desabou – esmagando quatro carros, mas sem deixar mortos nem feridos – terá de ser reconstruído exatamente como era. O incidente chamou atenção das autoridades e dos cidadãos para as urgências que sempre estiveram visíveis nas ruas da cidade mas, até o momento, poucas garantias foram dadas sobre o futuro do conjunto urbanístico de Brasília.

Leia, abaixo, a entrevista com o Iphan sobre o tombamento e a falta de manutenção na capital federal:

G1: Acho que seria importante a gente começar explicando um pouco a própria ideia de tombamento, e o que ele significa para Brasília.

Carlos Madson Reis: Eu quero aproveitar e explicar o papel do Iphan. A instituição foi criada em 1937, fez 81 anos agora em janeiro, e a responsabilidade dela é preservar e valorizar o patrimônio cultural brasileiro.

Para efeito didático, nós temos o patrimônio material, que são os bens físicos, um prédio, uma praça, um conjunto urbanístico. Aqui, fica também o patrimônio arqueológico. E temos o patrimônio imaterial que é registrado, e não, tombado. A Festa do Divino de Pirenópolis, a capoeira são exemplos já reconhecidos.

No caso de Brasília, Ouro Preto, Olinda, Rio de Janeiro, há o tombamento reconhecido pelo Iphan e pelo governo local. Em Brasília, o tombamento também é reconhecido pela Unesco como patrimônio mundial. O que é tombado são as características urbanísticas, os valores, os atributos que dão cara a essa cidade.

G1: Mas isso quer dizer o quê? Como a gente sabe o que é tombado e o que não é?

Madson: O que está tombado é o projeto urbanístico, o mais importante do século 20 segundo a Unesco. O desenho da cidade em avião, cruz, como queiram chamar. O cruzamento dos eixos, as superquadras.

Isso não quer dizer que a calçada é tombada. São os elementos, o prédio com pilotis, o cinturão verde, o comércio local nas entrequadras. Junto a isso, alguns edifícios e espaços foram tombados individualmente pelo Iphan – a Igrejinha, o Palácio da Alvorada, a Esplanada dos Ministérios. Ou seja, têm uma fiscalização mais específica.

A rodoviária do Plano Piloto, por exemplo, não é tombada. Está na área tombada, é um elemento importantíssimo. Qualquer mudança que se faça, tem que ouvir o Iphan. Mas não somos responsáveis pela manutenção da rodoviária, por fiscalizar pavimento, isso quem faz é o governo.

G1: No caso do viaduto, o que o Iphan pode fazer? Ou o que deveria ter feito?

Madson: O viaduto faz parte da área urbana, da área tombada, mas não está tombado individualmente. O Iphan não tem a atribuição de fazer essa fiscalização rotineira.

Estivemos ontem [quinta-feira, 8] sentados com o secretário de Gestão do Território, com a Casa Civil, e ponderando. E oficializamos quais cuidados devem ser tomados, não só fisicamente, como formalmente e ambientalmente. Tem que ser recuperado como estava antes.

G1: Do mesmo jeitinho? Não há nenhuma flexibilidade no projeto?

Madson: O que não pode alterar é o desenho. Você não pode fazer, ali, uma nova coluna. Se for remover o pilar, mesmo se trocar o material, o concreto, o desenho tem que ser igual.

O problema é que a tentação é grande, os novos construtores ficam com vontade de deixar uma marca, uma assinatura.

A gente não imagina que as cortinas do Palácio de Versailles sejam as mesmas do século 19. Os vidros, os jardins sofreram intervenções, é claro. Mas, sempre, no sentido de restauração, mantendo o conceito.

G1: No dia da queda do viaduto, o governador Rodrigo Rollemberg (PSB) chamou Brasília de “uma senhora que está envelhecendo”. É uma das capitais federais mais jovens do mundo. O senhor concorda com a frase?

Madson: Não concordo, é meia verdade. Se não, Paris e Rio de Janeiro estariam no chão. Os relatórios deixam patente uma falta de manutenção nos equipamentos.

Tudo no mundo está envelhecendo, mas isso não justifica a falta de manutenção. Pelo contrário, por ser tão nova, a cidade não devia estar com cara de envelhecida.

Aquele viaduto [da Galeria dos Estados] foi feito em 40 dias. É óbvio que, naquele momento, fizeram muitas obras ao mesmo tempo. Mas são 60 anos, não é muito tempo para uma estrutura de concreto armado.

Na época, era até uma tecnologia nova. Mas não justifica, nada justifica. O viaduto não envelheceu aos 60 anos, envelheceu desde o primeiro dia.

G1: O fato de Brasília ter essa inspiração modernista, prédios baseados no concreto armado, no vidro, toda essa peculiaridade torna a manutenção mais difícil?

Madson: Nenhuma cidade é igual à outra, nunca. Se você construir uma cidade igualzinha aqui do lado, não será a mesma cidade. A dificuldade de manutenção é igual.

Você imagine restaurar um prédio do século 17, feito de adobe, em um país com muita chuva. Isso não pode ser desculpa. O desafio de Brasília é grande, mas não é maior que o de Paris, o de Olinda, onde é preciso manter e restaurar estruturas com 400 anos.

G1: Mas o tombamento virou desculpa pra uma série de coisas que não andam em Brasília. As obras de drenagem, a expansão do Metrô...

Madson: Brasília, de uma maneira geral, tem distâncias maiores entre os prédios, é algo inerente ao pensamento modernista. Agora, você pode ir qualificando esse espaço urbano. Novas demandas, e novas soluções. Nós somos uma sociedade jovem, mas isso não é desculpa.

O tombamento não é uma camisa de força, e não pode virar fetiche. “Não pode fazer nada, mexer em nada”. Ele tem uma função social, que é de preservar a qualidade de vida.

Se você faz uma superquadra de dez andares, você perde a qualidade de vida que tem hoje. No Eixo Rodoviário [Eixão], se você reduz a velocidade para 60 km/h, você ganha qualidade de vida.

Antes, não havia ciclovia, brincava-se de bicicleta em cima da grama. As ciclovias prejudicam o tombamento? Pelo contrário. Trazem qualidade para a cidade. Pavimentação, acessibilidade, estações de Metrô, tudo isso é positivo. Falta investimento, isso não é culpa do Iphan.

G1: O Iphan não tem a função de fiscalizar, mas no caso de um descaso recorrente como o desses viadutos condenados, ele não pode agir?

Madson: A gente pode, e a gente faz. Aquela reforma da rodoviária do Plano Piloto, no governo passado [Agnelo Queiroz, do PT], foi uma ação concomitante entre o Iphan e o Ministério Público.

A perda daquele equipamento seria irreparável para o patrimônio. Faz parte da cidade, é um componente importante. Naquele ponto, quando havia risco de perder a rodoviária, o Iphan atuou.

Nesses últimos três anos, fiscalizamos Palácio da Alvorada, Palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal, Itamaraty, Palácio da Justiça. Fizemos um trabalho inicial com Câmara e Senado, e estamos começando nos prédios ministeriais.

G1: Nos blocos residenciais do Plano Piloto, como é a fiscalização? A gente sabe que existe uma disputa pela reforma das fachadas, colocar pastilha, pintar, gradear...

Madson: Os blocos não são tombados individualmente pelo Iphan, e sim, a concepção da superquadra. Edifícios de até seis pavimentos, com pilotis, dispostos aleatoriamente na quadra. A faixa verde é obrigatória, o cercamento da quadra é proibido.

Agora, os blocos podem sofrer alterações. A rigor, você pode mudar toda aquela arquitetura, mas muitas vezes não é conveniente, não se justifica. Desde 1987, com a inscrição no patrimônio mundial, a nossa preocupação é de proteger a arquitetura.

A gente está trabalhando para criar um órgão mais forte, porque estão mutilando a arquitetura dos prédios. A própria questão das fachadas, das pastilhas, a gente tem conseguido colocar os novos projetos bem próximos do original. Mas mais que isso, só se tombássemos os edifícios.

Nós já temos a maior área tombada do mundo. São 112,25 quilômetros quadrados. O segundo colocado é Ouro Preto, com 8 quilômetros quadrados. O Rio tem um outro tipo de tombamento, que é no conceito de paisagem cultural. Mesmo assim, são 56 quilômetros quadrados.

G1: No ano passado, chegou a circular um rumor de que o DF corria risco de perder o tombamento. Isso existe? Como é a revisão desse “título”?

Madson: A perda do título é passível de acontecer, não só aqui. Qualquer patrimônio mundial pode perder o título da Unesco, mas Brasília não está na lista de risco deles. Então, a princípio, não corremos esse risco.

Pelo contrário, a Unesco reconhece que Brasília está enfrentando desafios, mas os parâmetros que basearam seu reconhecimento como patrimônio estão mantidos. A gente não mutilou a cidade, não mexeu no desenho.

É desejável a falta de manutenção? Não. Mas isso não é um fator para a perda do tombamento, a não ser que haja um processo extremo de degradação. Se a superquadra estiver abandonada, sem moradores, ou se mudarem o sistema viário, se cercarem as quadras.

Agora, uma calçada quebrada, um mato alto são questões de manutenção. É claro que precisa ter esse trabalho, sendo tombada ou não.

G1: Mas o que significa, na prática, ser uma área tombada? É só um componente simbólico, ou é algo palpável, com efeito econômico?

Madson: O tombamento gera dividendos, nós brasileiros é que aproveitamos mal. De maneira geral, aproveitamos muito pouco o potencial econômico do nosso patrimônio. Há cidades no mundo inteiro que vivem disso, nós saímos do Brasil para ver Macchu Picchu, os prédios de Paris.

Aproveitamos muito mal, porque temos processos de gestão urbana muito incipientes. A preservação não é um engessamento, a cidade vai mudar independentemente do que a gente goste, queira ou não. A Ouro Preto de hoje não é a do século 18. O mesmo com Paris, Amsterdã, São Paulo.

G1: Esse trauma do tombamento se mistura com alguns mitos sobre a cidade, né. Brasília não foi planejada para andar a pé, Brasília foi planejada para 100 mil pessoas, essas coisas.

Madson: Exato. De fato, a nossa densidade urbana é muito baixa no Plano Piloto. Somos a terceira metrópole do país, depois de São Paulo e Rio de Janeiro, mas no Plano, a densidade é baixa. Imaginou-se 500 mil pessoas morando no centro, mas não temos isso.

G1: Ao mesmo tempo, no horário de pico esse número chega quase a 2 milhões.

Madson: Exatamente, porque o modelo de cidade que adotamos é um modelo esgarçado, de periferia. Agora, se Brasília tivesse 500 mil habitantes, ela não se sustentaria como capital. A capital teria voltado para o Rio de Janeiro.

Outro dia, um colega foi trocar de operadora de celular, e ouviu do atendente que o problema da rede era culpa do Iphan, que “não deixava colocar torre”. O que o Iphan falou é que queriam colocar torres horrorosas no centro da cidade.

Em Paris, em Buenos Aires, usam antenas pequenas no topo dos prédios. Ou seja, queriam usar uma tecnologia barata, sucateada, e colocar isso na conta do tombamento.

G1: Além de superintendente do Iphan, o senhor é arquiteto pela UnB e estudou, no doutorado, a reabilitação de centros históricos. Esse déficit de manutenção é só do DF? É nacional? O que acontece com a gente?

Madson: A gente tem um problema de gestão urbana no país, no patrimônio e no resto. De maneira geral, a gente ainda vê cultura como gasto, por exemplo. Os países que entendem a cultura como investimento estão se saindo melhor, preservando mais.

Ainda não chegamos nesse estágio civilizatório, ainda temos que avançar.

Temos muitos ganhos. Ouro Preto, embora tenha problemas, não está no chão, sem preservação. Como Brasília também não está, não se pode dizer que está um horror. Sobretudo na área tombada, Brasília ainda tem um padrão urbano superior a muitos do Brasil, comparável a cidades do exterior.

G1: Mas o que essas cidades do exterior fazem, e que poderíamos replicar?

Madson: Não há um modelo, são valores. Bogotá teve uma experiência muito exitosa, mudou sua maneira de organizar a cidade. O prefeito [Enrique Peñalosa] ficou famoso por dizer que “uma cidade avançada não é onde o pobre vai trabalhar no transporte individual, mas onde o rico vai de transporte público”.

Além disso, a gente tem um problema de continuidade. Cada governo que chega quer reinventar a roda, trazer um “novo” que, muitas vezes, não tem nada de novo.

G1: Um exemplo emblemático disso é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), não? O projeto foi, voltou, e nada. O senhor consegue nos explicar o que acontece com o tema?

Madson: O Iphan estabelece diretrizes para que as cidades montem o Plano Diretor. Aqui, deu-se o nome de PPCub e o processo vem sendo discutido desde 2007, já são mais de dez anos.

Não sai do papel por uma série de problemas de intenção, de proposição. Dizem que fizeram não sei quantas audiências públicas, mas é preciso qualificar essa participação. Nós nos manifestamos na última versão, em 2013, que tinha problemas. Em 2016, editamos uma nova portaria, com novos critérios para os setores urbanísticos de Brasília.

G1: Em 2013? Mas o governo diz que tem uma versão nova pronta, do ano passado, e quer votar na Câmara Legislativa neste ano.

Madson: Bom, então não passou pelo Iphan. A gente acompanha com um grupo técnico mas o superintendente do Iphan desconhece. A versão final, se é que tem uma, não passou por nós.

Não existe uma lei que obrigue o projeto a passar aqui. Mas existe uma lei que prevê que qualquer alteração na área tombada precisa de aval do Iphan. Não quero criar conflito, mas se o projeto desrespeitar o tombamento, não temos problema nenhum em contestar, embargar, denunciar.