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Tecnologia
22/02/2021 19:09:00
“As pessoas querem se comunicar com os amigos, não com anunciantes”
Fundador do Signal, aplicativo de mensagens cifradas que desafia o WhatsApp, diz acreditar que o atual funcionamento da Internet é uma loucura e aposta num modelo semelhante ao da Wikipédia

El País/PCS

O fundador do Signal, Moxie Marlinspike, em uma imagem recente. (Foto: Signal)

Se alguém procurasse uma figura para encarnar esta nova década de reação à tecnologia predadora dos nossos dados, Moxie Marlinspike seria seu modelo. Seu nome já é um pseudônimo: Moxie era a forma carinhosa pela qual seus pais o chamavam, e Marlinspike é um tipo de agulha usada para costurar velas. Sua obsessão com a privacidade o leva a evitar responder a perguntas específicas dos jornalistas sobre seu nome real, idade e origens.

Marlinspike há uma década se dedica a facilitar a criptografia na comunicação por celular: o Signal, aplicativo que ele fundou, foi concebido para popularizar mensagens e chamadas cifradas sem que isso seja um desafio técnico. Depois do fiasco da mudança da política de privacidade do WhatsApp em janeiro, quando o popular serviços de mensagens anunciou que compartilharia determinados dados com sua matriz, o Facebook ―e depois suspendeu temporariamente a decisão―, o Signal duplicou o número de usuários no mundo, de 20 para 40 milhões.

Por que esta revolta pela privacidade justamente agora? “É muito complicado. As pessoas não viam assim. Mas, uma vez que tudo isso entra para o consciente coletivo, só são necessários esses pequenos catalisadores”, diz Marlinspike da Califórnia, onde vive, numa chamada com o EL PAÍS através do Signal. “Quando as pessoas precisam enfrentar mais uma mudança nas políticas de privacidade e no final de tudo diz ‘aceitar’, então elas percebem que podem fazer algo desta vez em vez de clicar”, argumenta. Esse algo seria experimentar o Signal.

Esse aplicativo surgiu como um recurso para ativistas, jornalistas e hackers. O ex-analista norte-americano Edward Snowden, autor de um dos maiores vazamentos de informações sigilosas da história, diz usar o Signal diariamente e descreve Marlinspike, que o visitou em Moscou em 2015, como alguém “fenomenalmente interessante, quase uma figura literária.” “As pessoas pensam no Signal como este projeto estranho, mas para mim é excepcionalmente normal e o que é estranho é todo o resto”, afirma Marlinspike.

A explicação de Marlinspike é muito simples: “O Signal funciona como parece que funciona, só isso.” Essa simplicidade é a vantagem do seu serviço. “Abro um aplicativo, escrevo algo na caixa, dou enviar e o que acontece é que só receptores da mensagem e você podem vê-la.” Por que isso é algo tão maravilhoso, segundo Marlinspike? “Porque cada vez mais gente percebe que isso quase nunca é verdade, que o modo como a tecnologia funciona não é como parece que funciona. As pessoas querem se comunicar, mas só querem compartilhar isso com seu amigo, não com um punhado de anunciantes”, diz.

Esta distinção fez o Signal decolar e está levando mais gente a duvidar dos aplicativos das grandes companhias. “A gente já percebeu que o Facebook não cria aplicativos para eles, e sim para seus dados. O Facebook está nessa estranha situação em que as pessoas usam seus produtos diariamente, mas também o desprezam.”

Mas por que este processo começa a explodir em 2021, quando já está claro há anos que nada na Internet é grátis? Marlinspike vê dois motivos: primeiro, que agora sabemos melhor como a Internet funciona e “quais dados largamos por aí”. E, segundo, que a “Internet era algo corriqueiro para a vida, e agora é onde a vida acontece”. Antes, falar bobagem era grátis. Agora, uma mensagem de cinco anos atrás pode destruir vidas emocionais e profissionais.

“Quando você trabalha muito tempo em tecnologia, acaba por desmitificá-la. Antes, quando as pessoas olhavam o e-mail, parecia algo mágico: você escreve algo e aparece no computador de outra pessoa. Mas se você trabalha em computação sabe que não há nada de mágico nisso, que [a mensagem] está nesse computador aí, nesta sala, em um arquivo que qualquer um pode abrir e ler”, explica Marlinspike. O Signal é uma organização sem fins lucrativos. Em conversas com especialistas na Espanha, alguns temiam que acabasse como o WhatsApp, comprado por uma grande empresa. Mas seu modelo de organização impede. Ele se financia com donativos – pretende ser a Wikipédia dos serviços de mensagens.

A criptografia e a simplicidade no uso do Signal são sua grande cartada. Funciona como o WhatsApp mas sem que o Facebook esteja por trás. As mensagens do WhatsApp são cifradas justamente com o protocolo do Signal, de modo que o Facebook não tem como vê-las. Mas nosso uso deixa um rastro de dados que descrevem comportamentos: nossos contatos, nossos grupos, os nomes desses grupos, nossa atividade, nosso aparelho, quanto tempo você ficou on-line. São dados que o WhatsApp compartilha com sua matriz (o Facebook), ao passo que o Signal não recolhe nada. Em uma célebre solicitação do Governo dos EUA à companhia em 2016, sobre dois números de telefone, o Signal só pôde informar qual era o número vinculado a uma conta, quando esta havia sido criada e quando foi sua última conexão a um servidor do Signal. E só.

O fundador do Signal, Moxie Marlinspike (à esquerda), com o hoje diretor da Unidade Global de Consumo Digital da Telefónica, Chema Alonso (à direita), em uma imagem de 2009

“Privacidade não implica austeridade: quando diziam que a privacidade estava morta era porque acreditavam que era o contrário de compartilhar”, diz Marlinspike. “Mas as pessoas gostam de compartilhar fotos e mensagens com seus amigos. Privacidade não é se privar disso, e sim decidir que, se você compartilhar algo com seus amigos, essas são as pessoas com quem você compartilha, não com anunciantes, governos, empresas, os funcionários dessas empresas, qualquer um que pirateie essas empresas”, acrescenta.

Vida novelesca

A figura de Marlinspike é tão misteriosa quanto seu passado. Os vários perfis publicados a respeito dele dizem que nasceu no centro do Estado da Geórgia (sul dos EUA) no começo da década de 1980. A escola o atraiu pouco e começou a se interessar pelo anarquismo e os computadores. Depois de acabar o ensino médio, se mudou para San Francisco, onde dormiu em um banco de parque nos primeiros dias. Depois conseguiu trabalho de programador, mas durou pouco. Marlinspike não se via trabalhando a cada dia, por toda a sua vida, diante de um teclado. Começou a tentar viajar de carona, depois se deslocava pelos EUA em trens de carga e morava em casas ocupadas.

Marlinspike é o protótipo do autodidata: “Se você quer fazer algo, comece a fazer”, costuma dizer. Assim aprendeu a navegar, por exemplo. E a voar em balão, embora tenha acabado de muletas. Em 2010 alcançou uma notável popularidade na comunidade de segurança cibernética graças a um buraco que encontrou em quase todos os navegadores, junto com a ferramenta que construiu para aproveitá-lo. Em 2012 o Twitter comprou dele e de um amigo os aplicativos TextSecure e RedPhone, uma primeira versão do que viria a ser o Signal. “Nunca tinha visto tanto dinheiro junto, mas no meu caso essa baliza está bastante baixa”, contou anos depois à Wired.

Marlinspike começou a trabalhar no Twitter e meses depois, na baía de San Francisco, seu veleiro virou e ele esteve a ponto de morrer de hipotermia ―foi salvo por outro navio e, quando chegou ao hospital, os termômetros não registravam sua temperatura. Foi o empurrão que ele precisava para deixar o Twitter e, com mais de um milhão de dólares em ações, lançou-se a navegar outra vez. Em 2014 fundou o que hoje é o Signal. Duas das últimas viagens dele foram à Copa do Mundo de futebol das nações sem Estado, disputada na Abkházia, uma região separatista da Geórgia, e de bicicleta por Chernobyl.

“A maneira como a Internet funciona hoje é uma loucura. Com o Signal o que estamos fazendo é construir um projeto tão chato que permita não só que a tecnologia funcione como parece que funciona, mas também construímos uma organização que funcione diferente”, afirma.

Para os céticos, a figura de Marlinspike, alheia à essência do que foi o Vale do Silício até hoje, ajuda. “Queremos demonstrar que é possível mudar, que a Internet nem sempre funcionou assim”, diz. “Temos a vantagem de que só precisamos pensar em quem usa o Signal diariamente, não em investidores ou anunciantes. Outras empresas têm um bilhão de pessoas em seu aplicativo, portanto têm sua atenção, que depois podem vender a 100.000 anunciantes e usam esse dinheiro para remunerar investidores”, explica. O Signal, diz, só beneficia quem o usa.

E os crimes?

A criptografia de mensagens atrai polêmicas desde seus primórdios. As forças de segurança temiam que organizações criminais as aproveitassem para se coordenar. A facilidade de uso do Signal é um problema agregado. Mas Marlinspike acredita que esse argumento não é suficiente para impedir que os cidadãos usem a criptografia em sua vida normal, longe dos olhos de empresas, investidores e policiais.

Mas o que acontecerá no dia em que uma instituição policial denunciar que determinado atentado ou rede de pedófilos se coordenou no Signal? “Se o temor for que as pessoas usem a criptografia para cometer atos criminais, isso não tem relação com o Signal. Se o Signal não existisse isso continuaria sendo um problema”, diz Marlinspike. “O Signal não está inventando a criptografia. Há um monte de software grátis que usam a criptografia. O problema é que é difícil de usar. Não me refiro a que você precisa ser inteligente para usá-la, e sim que precisa de três cliques antes de mandar um email. Quem está envolvido em uma atividade criminal de alto risco sempre estará disposto a clicar três vezes”, acrescenta.

Não está claro que seja assim. Milhares de delinquentes pagaram muito dinheiro para usar serviços privados cifrados simples. O Signal oferece esse serviço grátis. Não vê nada, não sabe quem usa o serviço, nem o que se diz. Se isso dificulta o trabalho das forças de segurança é porque deve ser assim, segundo Marlinspike. Em um post em 2013 intitulado “Todos deveríamos ter algo a esconder”, Marlinspike escreveu: “Imagine que houvesse uma realidade alternativa distópica onde a polícia fosse 100% efetiva, onde os criminosos potenciais soubessem que seriam imediatamente identificados, capturados e encarcerados”. Nesse mundo, acrescenta, o casamento gay e o consumo legal de maconha não teriam sido possíveis. O problema da propagação de material ilícito gera debates polêmicos entre os próprios funcionários da organização.

Como a Wikipédia, o Signal espera viver dos donativos de seus usuários, algo que o WhatsApp nunca conseguiu. Quando quis pedir um euro por mês, foi um drama. Hoje as coisas mudaram. Brian Acton, cofundador do WhatsApp e hoje bilionário graças à venda para o Facebook, trabalha com Marlinpsike e os 30 e tantos funcionários do Signal: “Ele se envolveu em 2016 com apoio financeiro [deu 50 milhões de dólares], mas também acredita no projeto e ajudará. Ultimamente tivemos problemas ao ampliar nossa escala, porque o Signal é um grupo muito pequeno e nos faltavam mãos, e ele nos ajudou um pouco aqui e ali”, diz Marlinspike.

Neste período de crescimento do Signal, outro aplicativo que foi inclusive mais baixado foi o Telegram. Marlinspike os busca distinguir. “São muito diferentes. O Telegram foi construído igual ao Facebook Messenger. Por definição, têm acesso a qualquer mensagem que você escreveu ou recebeu, são guardadas em texto sem formatação e sem criptografia nos seus computadores. Eles têm todos os seus contatos, todos os seus grupos, suas imagens, todas as suas buscas. Não é uma plataforma de mensagens privadas.”