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Polícia
13/02/2021 10:40:00
Traficantes alteram cor da droga para driblar a polícia e chegar à Europa
Entorpecente modificado circula desde a década de 1980, na América do Sul, mas apreensões são raras; narcótico adulterado não tem cheiro e escapa de testes químicos de identificação

Época/PCS

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Apreensão de cocaína negra embalada em pacotes de açaí em pó (Foto: Divulgação)

Uma encomenda de açaí em pó passou pela fiscalização de auditores da Receita Federal no Rio Grande do Sul, no dia 1° de fevereiro, e se transformou em uma apreensão inédita feita pela Polícia Civil do estado. Os pacotes chegaram ao município de Novo Hamburgo pelos Correios e, em vez de frutas desidratadas, as embalagens continham um tipo de droga que raramente é detectada no Brasil: a cocaína negra.

Este formato de entorpecente está presente no narcotráfico desde a década de 1980 e, neste período, tem passado praticamente despercebido pelas autoridades. Modificada quimicamente, a cocaína negra tem a coloração escurecida, não apresenta cheiro - costuma passar percebido por cães farejadores - e é resistente ao narcoteste, um exame no qual aplica-se um reagente no produto suspeito e ele muda de cor se de fato for um narcótico.

Essas características fazem da cocaína negra um tipo de droga considerado perfeito para exportação. Sua capacidade de driblar as autoridades é refletida inclusive no preço da substância. Enquanto 1 kg de cocaína branca vale R$ 25 mil no mercado brasileiro, o equivalente do narcótico alterado para a cor preta custa por volta de R$ 230 mil.

A droga apreendida em Novo Hamburgo totalizava 26 kg e foi avaliada em cerca de R$ 6 milhões. Metade da carga foi detida no momento em que o receptador dos entorpecentes, um imigrante colombiano de 36 anos, recebia os pacotes em uma loja de produtos naturais que era proprietário. A Polícia Civil encontrou o restante estocado dentro do estabelecimento.

A Receita Federal informou que um laudo pericial comprovou que se tratava de cocaína. E a investigação policial identificou a procedência da droga. De acordo com a Polícia Civil, os entorpecentes foram produzidos pelo Cartel de Cali, na Colômbia, e o colombiano preso na Operação Açaí recebia R$ 10 mil por cada remessa recebida. Ele está preso e não teve o nome divulgado.

Cocaína negra estava estava empacotada como açaí em pó (Foto: Reprodução)

Rota fluvial

Os pacotes de açaí com cocaína negra apreendidos no Rio Grande do Sul eram provenientes de Manaus e enviados em remessas regulares, de 13 kg cada. Segundo os investigadores, os entorpecentes entram no Brasil pela rota do Rio Amazonas, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru. As cargas de droga são enviadas de barco para a capital, em viagens que chegam a durar 40 horas, e depois são despachadas para outros destinos.

Em 9 de abril de 2020, o Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) do Amazonas fez sua primeira apreensão de cocaína negra. Na altura de Manacapuru, a 68 km de Manaus, os policiais interceptaram uma embarcação com 630 kg de entorpecentes escondidos em um fundo falso no porão. Desse total, 40 kg eram do narcótico adulterado e de coloração escurecida.

“A grande finalidade dessa modificação é burlar a fiscalização. Estamos lidando basicamente com uma camuflagem logística que altera o odor, muda a cor e escapa do narcoteste. Então é um produto perfeito para a exportação. Acreditamos que o destino final da droga seja a Europa”, afirmou o diretor do Denarc, delegado Paulo Mavignier.

Além da Colômbia, o Denarc investiga o envio de remessas de cocaína negra do Peru para o Brasil. Mavignier explicou que em território peruano há casos de prisões de traficantes, fechamento de laboratórios de droga e apreensões desse tipo de entorpecente. E acrescentou que existe um acordo de cooperação entre as autoridades policiais dos dois países.

Carga de cocaína negra foi encontrada em barco no Rio Amazonas (Foto: Reprodução)

Também há registro da entrada de cocaína negra no Brasil pela fronteira com a Bolívia. Em janeiro de 2015, foram apreendidas duas maletas de notebook que estavam prestes a serem enviadas de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, para a Espanha. De acordo com a Receita Federal, em vez de aparelhos eletrônicos, o que estava a ser despachado em uma agência dos Correios era "modalidade emborrachada da droga", utilizada para “ludibriar a fiscalização”.

Três décadas de tráfico

Apesar de pouco conhecido, o entorpecente não é novidade no mercado da droga. Em 2015, uma reportagem da VICE Colômbia atribuía a origem da cocaína negra ao Chile, na década de 80. A revista traz um relato de Manuel Contreras, general do exército chileno durante a ditadura de Augusto Pinochet e braço direito do ditador. O militar assume ter sido um dos responsáveis por essa variação do entorpecente e aponta a pequena cidade de Talagante, localizada a pouco mais de 40 quilômetros de Santiago, como o berço do narcótico.

Em confissão por escrito, enviada ao Ministério da Justiça do Chile, Contreras afirma que a cocaína negra começou a ser fabricada em 1986. Ele revela que Pinochet ordenou que um laboratório de processamento de cocaína fosse criado em bases militares. O general admitiu que uma espécie de cocaína na cor preta, indetectável aos controles de segurança dos aeroportos, era produzida nas dependências do exército. Contreras chefiou entre 1973 e 1977 a temida polícia de Pinochet, a Diretoria de Inteligência Nacional (DINA).

A primeira apreensão de cocaína negra aconteceu em maio de 1998, na Colômbia. À época, 115 kg da droga foram apreendidos pela Polícia Antinarcóticos no Aeroporto Internacional El Dorado, na capital Bogotá. A carga, que tinha como destino a Itália, foi misturada com ferro em pó e carvão vegetal moído para camuflar o entorpecente. A notícia foi publicada pelo El Tiempo, um dos principais jornais colombianos.

Pacote de cocaína negra apreendida no Rio Amazonas (Foto: Reprodução)

Mesmo efeito no corpo

Ainda existem dúvidas sobre o uso direto da cocaína negra. No entanto, sabe-se que a principal questão em torno dela está no princípio ativo, que é o mesmo da cocaína branca e suas variantes. "Acredita-se que ela passa por um processo de refinamento. Primeiro, extrai-se o cloridrato de cocaína, para depois vendê-la na forma comumente utilizada", descreve Renato Filev, neurocientista pesquisador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Proad/Unifesp).

Filev conta que a droga no formato preto é somente uma intermediária do processo de transporte do mercado ilegal a fim de evitar os rastreios. Depois de chegar ao destino, o conteúdo impregnado no entorpecente é retirado para ser comercializado nas ruas na forma clara e purificada. "São usados diversos adulterantes, como íons, cobalto - que faz essa cor azul escura - e carvão ativado. No fim, nada mais é que a mesma cocaína", afirma.

O consumo da versão negra provoca os mesmos resultados da cocaína branca e suas variantes, a depender da via de administração de uso. "Caso seja fumada, os efeitos serão mais parecidos ao do crack. Se inalada, mais semelhantes à forma de sal. O problema é que grande quantidade da cocaína que é vendida para o consumidor final é adulterada com mais componentes, como levamisol, cafeína e outros estimulantes", explica Filev. "Isso acaba mascarando o efeito do cloridrato de cocaína", acrescenta o neurocientista.

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