José Manuel Diogo
ImprimirHá um conto de Jorge Luís Borges, “A trama”, que é crônica anunciada da tragédia do homem negro espancado e morto num supermercado da zona norte de Porto Alegre. Não era ainda dia da Consciência Negra, mas era da supremacia branca. Para João Alberto Silveira Freitas era só dia de compra, mas o Carrefour era da morte.
Na Trama de Borges, como no pátio do supermercado lá do Sul, para que seu horror fosse perfeito, João Alberto Silveira Freitas, acossado ao pé de uma mulher de branco que filmava a cena numa dança inquieta de quem aplaude gladiadores, pelos impacientes punhos dos guardas militares que o deviam proteger, descobre, entre os rostos e os socos, o daquele PM temporário que o havia de matar.
Como na Trama de Borges, João Alberto Silveira Freitas já não se defende, ele só grita: “Milena me ajuda”, mas são só indistintos monossílabos de dor aflita, que não são Shakespeare nem Quevedo, são apenas pânico e medo, resposta pífia aos socos enlouquecidos dos seus algozes.
Como ao destino agradam as variantes, na véspera ocasional do Dia da Consciência Negra que, apesar de uma lei estadual o determinar feriado em todos os municípios gaúchos, o Governo do Estado afirma não se configurar como um feriado estadual.
Como ao destino agradam as simetrias, ao cair, outro gaúcho, desta vez brasileiro, João Alberto Silveira Freitas, talvez haja reconhecido o rosto de uma das três pessoas que o ladeiam e agridem até à morte sem qualquer motivo justificável e aceita, sem poder fugir, a violência com que os brancos — curiosamente vestindo de negro — lhe arrebentam da face.
João Alberto Silveira Freitas continua gritando preso ao chão, sem saber ainda que vinha próxima a morte que o haveria de levar. Como na Trama de Borges, os guardas o matam para que, mais uma vez, se repita a cena.
Nenhum homem bom, de qualquer cor ou credo, consegue deixar de exclamar, com dor e desatino, assistindo com mansa reprovação e lenta surpresa (e também estas palavras devem ser ouvidas e não lidas), ao vídeo que internet espalhou pelo mundo, a mesma frase de vinte século atrás: Pero Che!