Ao\n chegar aos 30 anos, o MST está enfrentando um inimigo encravado em suas\n próprias entranhas e de alto potencial corrosivo: a comercialização de lotes em\n assentamentos rurais emancipados, cujo fenômeno é estimulado pela alta no preço\n da terra e pela ausência de políticas públicas.
No assentamento Primavera, em\n Andradina, interior paulista, berço do MST em São Paulo e o único do País em\n que o governo federal entregou a totalidade dos títulos de propriedade\n definitiva, o processo de transferência ganhou ritmo preocupante.\n \n “Metade\n dos assentados já vendeu os lotes”, diz o geógrafo Eduardo Girardi, da\n Universidade Estadual Paulista (Unesp), estudioso da questão agrária.\n \n Resultado de uma invasão ocorrida no início dos anos de 1980, o caso de\n Primavera é emblemático. Com 3.676 hectares, divididas em 210 lotes - onde vivem\n cerca de 870 pessoas que dependem da agricultura - o assentamento está sendo\n afetado pelas leis de mercado.\n \n Em áreas propícias à plantação de milho ou cana para a produção de etanol,\n os grandes produtores chegam a oferecer em São Paulo até R$ 30 mil por hectare\n - historicamente o mais alto valor já oferecido -, embora o preço médio\n regional gire em torno de R$ 13.700.\n \n Um lote de terra nua no assentamento Primavera tem cerca de 17 hectares.\n Pelo preço médio do mercado paulista, é um patrimônio estimado, por baixo, sem\n incluir as benfeitorias, em cerca de R$ 240 mil, cuja liquidez está se\n transformando numa grande tentação para as famílias que enfrentam as\n dificuldades da vida rural. Se as terras forem boas para a cana, valeria mais\n de R$ 500 mil. A renda nos assentamentos rurais varia de região para região,\n mas são raros os locais em que chegue a R$ 30 mil por ano.\n \n Eduardo Girardi diz que um dos grandes desafios de um assentamento é,\n paradoxalmente, a emancipação, que chega depois de uma longa prova de sobrevivência\n dos sem-terra, primeiro anos a fio nos acampamentos de lona preta à beira de\n estradas e, em segundo, pelas dificuldades para se firmar como produtor.\n \n Depois de um tempo médio de 20 anos, quando já consegue andar com as\n próprias pernas, o agricultor recebe o título definitivo do Instituto Nacional\n de Reforma Agrária (Incra) e não tem mais qualquer impedimento legal para, se\n quiser, vendê-lo. É uma situação bem diferente de quem vende ou arrenda o lote\n não emancipado. Nesses casos, o Incra pode retomar a propriedade e entrega-la a\n outra família que esteja na fila da reforma agrária.\n \n Há riscos, segundo Girardi, de a expansão das lavouras do agronegócio\n estimularem a comercialização massiva de lotes da reforma agrária diante da\n possibilidade de novas emancipações de projetos implantados há mais de 20 anos.\n \n Até 1994, o Incra tinha cadastrados 931 projetos que estão atingindo a\n maioridade este ano e, portanto, encontram-se dentro da possibilidade da\n titulação definitiva. No governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,\n entre 1995 e 2002, foram implantados novos 4.281 projetos, alguns deles com\n emancipação prevista para o ano que vem.\n \n “Se o quadro continuar como está, sem políticas de incentivo, será difícil\n segurar as famílias”, alerta o pesquisador da Unesp. O resultado pode ser uma\n paulatina volta do êxodo rural, que elevou para mais de 85% a população urbana\n do País. Estima-se que atualmente apenas 10% de quem vive da agricultura\n permaneça no meio rural. É a constatação de que, ao contrário de fixar o homem\n no campo, a falta de infraestrutura e de serviços, provocou intensa migração\n para os centros urbanos.\n \n Preocupado com a erosão na base, o MST enxerga a permissão de venda de lotes\n como a mais séria ameaça e já alerta para a possibilidade de privatização das\n terras da reforma agrária, uma cobiçada extensão de 88 milhões de hectares, sob\n o controle de aproximadamente 1,3 milhão de famílias assentadas.\n \n “O MST é contra a possibilidade de venda e vai lutar de todas as formas\n possíveis”, diz Jaime Amorim, dirigente nacional do movimento. Previstos numa\n Medida Provisória, os títulos são expedidos individualmente, o que facilita o\n assédio de grandes proprietários sobre famílias em dificuldades. Amorim defende\n o modelo de concessão de uso real do título, com direito à herança e usufruto\n de geração para geração, sem permissão de venda nem de arrendamento.\n \n “A terra conquistada num assentamento é fruto de uma luta coletiva. Permitir\n a venda é tudo o que direita e os setores latifundiários querem para desmoralizar\n o processo de reforma agrária e inclusive o governo”, diz o dirigente. Segundo\n ele, a brecha aberta pelo Palácio do Planalto facilitará o assédio dos\n fazendeiros sobre os assentados, aumentando os riscos de reconcentração da\n terra.\n \n “Como houve uma valorização do preço das terras em todo país, em função das\n taxas de lucro das commodities, é claro que os assentados, acabam se iludindo\n de que poderiam vender a terra por um preço bom e fazer algum outro tipo de\n negocio”, alerta Amorim.\n \n O presidente do Incra, Carlos Guedes de Guedes, diz que não há o que fazer\n caso o agricultor queira vender, mas afirma que o governo ainda não tem\n indicações de que os novos compradores tenham perfil diferente da tradicional\n clientela da reforma agrária.\n \n \n