O Globo/LD
ImprimirAntes que o verão traga de volta as perigosas nuvens de Aedes aegypti, o Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para a próxima quarta-feira o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que impede a abertura de processo e a prisão, previstos no artigo 124 do Código Penal, de mulheres que interromperem a gravidez por terem sido infectadas pelo vírus da zika. A medida, que propõe a legalização do aborto nestes casos, opção já recomendada pela ONU para os países onde há epidemia da doença, foi apresentada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) e tramita no Supremo desde setembro.
A análise do mérito ocorrerá uma semana após a Primeira Turma do STF negar a prisão preventiva de acusados de aborto e decidir, por maioria, que a prática, por qualquer motivação, não é ilegal nos três primeiros meses de gestação. O voto apresentado agora pelo ministro Luís Roberto Barroso, referente a um habeas corpus analisado em 2015, sustentou que a criminalização do aborto no primeiro trimestre é incompatível com direitos fundamentais da mulher, dentre eles os sexuais e reprodutivos, além de ferir sua autonomia, integridade física e psíquica, e o princípio da igualdade. A medida deve ser contestada pela Câmara dos Deputados.
Relatada pela presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, a Adin recebeu pareceres da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Presidência da República, via Advocacia-Geral da União (AGU), e do Senado. Os três órgãos argumentaram que a Anadep não teria legitimidade para propor a ação, o que não impede o plenário do STF de divergir e julgar a matéria. No mérito, a PGR se mostrou favorável ao direito ao aborto em caso de contaminação por zika, mas a AGU e o Senado são contrários, preferindo adotar somente a perspectiva de defesa do direito à vida desde a concepção.
O procurador-geral Rodrigo Janot concordou com o argumento da petição, de que a mulher infectada pelo vírus da zika está em risco físico e psíquico e em estado de tortura mental, uma situação de clara violação de seus direitos fundamentais. Com base nesta mesma tese, o Conselho de Direitos Humanos da ONU solicitou aos países com surto da doença, agravado pela negligência do poder público em combater o mosquito, que permitam o aborto seguro na rede pública e privada.
Além de defender a opção de a mulher interromper a gestação, caso ela queira isso, Janot considerou inconstitucional o prazo de apenas três anos para o pagamento do benefício de prestação continuada aos pais de crianças com microcefalia e a exigência de perícia do INSS e de comprovante de pobreza para a gestante receber o recurso. Já a AGU e o Senado não viram inconstitucionalidades e defenderam as políticas públicas de saúde adotadas pelo governo.
Em 2012, o STF autorizou o aborto — já permitido em casos de estupro e risco de morte da mãe — de fetos sem cérebro. Na época, a ministra Cármen Lúcia, hoje relatora da Adin, afirmou que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos preservava a dignidade da vida, “que é o que a Constituição assegura como o princípio fundamental do constitucionalismo contemporâneo”. Recentemente, ela avaliou que o problema da microcefalia era “completamente diferente”. Avaliou ainda que a epidemia de zika tornava o assunto mais delicado e demandava o debate na sociedade brasileira.
MICROCEFALIA NÃO É O MAIS GRAVE
A polêmica sobre o direito ao aborto enfoca a microcefalia, caracterizada pelo tamanho menor do crânio, como o distúrbio mais conhecido em bebês afetados pelo zika na gestação. Mas revela que não é o único, nem sequer o mais grave. Desde a decretação de emergência sanitária no Brasil, em novembro de 2015, cientistas e médicos têm constatado, em nível nunca visto, a destruição do cérebro em desenvolvimento. Chamam coletivamente as numerosas anomalias de síndrome de zika congênita, um termo guarda-chuva que inclui de ausência de córtex cerebral a deformidades severas de membros e órgãos.
Nos casos mais graves, o vírus provoca tamanha devastação que os fetos não têm tecido cerebral ou têm apenas restos do que viria a ser um cérebro. Quase todos nascem mortos. Especialistas explicam que esses bebês nem sempre são microcéfalos. Alguns apresentam perímetro craniano normal.
O surto de microcefalia associado ao zika vírus, que levou o governo brasileiro e a Organização Mundial de Saúde (OMS) a advertirem em 2015 para o risco de gestação, é só a ponta do iceberg. Hoje especialistas alertam, em conceituadas publicações científicas, que até bebês com tamanho do crânio normal podem ter anomalias extremamente severas, do tipo que as impede de respirar e engolir sozinhas. O mais preciso é falar em microencefalia, quando o tamanho do encéfalo, isto é, do tronco cerebral, cerebelo e cérebro, é reduzido.
E o zika pode provocar casos ainda piores. Pode não haver encéfalo algum ou só fragmentos. Há casos de bebês com hidrocefalia e tamanho de cabeça absolutamente normal. Mas dentro não há nada; apenas líquor. Nesses casos, o zika atacou de tal forma o sistema nervoso, que os neurônios morreram. Esses bebês morrem logo após nascer.
A hidrocefalia associada ao zika é completamente diferente da hidrocefalia comum, quando a cabeça é maior pela dilatação causada pelo acúmulo de líquidos, mas existem estruturas cerebrais preservadas. Nesses casos, se o líquor for drenado, é possível evitar ou reduzir danos.
Estudos publicados evidenciaram ainda alta frequência de outra deformidade severa associada ao zika, a ventriculomegalia. Ela acontece quando os ventrículos cerebrais, as cavidades do cérebro, são hipertrofiados e preenchidos por líquor. Neste caso, pode haver comprometimento de todas as funções cerebrais.
Além das microencefalia, da hidrocefalia, da ventriculomegalia, pesquisas já revelaram numerosas outras alterações do desenvolvimento cerebral. Calcificações (cicatrizes) são comuns nesses fetos. Já a anencefalia clássica nunca foi observada em fetos atingidos pelo zika.
'INVOLUÇÃO CIVILIZATÓRIA', DIZ PARECER DO SENADO
Assinado por seis advogados, o parecer que o Senado encaminhou ao STF contra o direito ao aborto em caso de contaminação do feto pelo zika vírus contempla posições radicalmente conservadoras. Além de comparar a descriminalização do aborto à de homicídio, o documento retroage até em relação à proteção aos direitos reprodutivos das mulheres, assegurados em lei há mais de 75 anos.
O parecer relativiza, por exemplo, a prevalência dada à mulher — a lei permite o aborto em caso de risco de morte para a gestante — quando há conflito entre o direito à vida do nascituro e da mãe. “É preciso agir com extrema cautela, observando o feto com o mesmo respeito devido à situação da mãe”. Também classifica como “involução civilizatória”, que conduziria à eugenia, a autorização de aborto por malformação do embrião ou do feto — como já determinado pelo STF no caso dos anencéfalos.
O time masculino de advogados do Senado menospreza ainda o sofrimento mental — chamado de tortura pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Procuradoria Geral da República — imposto às mulheres que contraíram zika durante a gravidez. “Não se demonstra a existência de elementos que possam assegurar que a saúde psicológica da mulher é melhor assistida pela autorização de aborto do que pela manutenção da gestação.” Também defende que há incerteza quanto a outros efeitos terríveis da zika, além da microcefalia.
"VONTADE DA MAIORIA"
Apesar de o direito ao aborto nunca ter sido examinado pelos deputados e senadores, os advogados do Senado deduzem que o Código Penal nunca foi modificado neste ponto, “não por mera omissão ou distração, mas pela vontade da maioria do Congresso Nacional.” Igualmente de forma genérica, sustentam ainda que “a repulsa ao aborto está profundamente arraigada na cultura brasileira” e “que as doutrinas abrangentes no país são uniformemente contrárias ao aborto.” Por fim, o Senado é contrário a prolongar benefícios sociais às famílias vitimadas pela epidemia do vírus zika já que, em tempos de crise econômica, não se pode “sobreonerar os já combalidos recursos do erário nacional.”
Segundo o Ministério da Saúde, até julho de 2016 foram registrados no Brasil 174 mil casos prováveis de infecção pelo zika, sendo 78 mil confirmados. Foram 15 mil casos envolvendo gestantes — 6,9 mil deles já confirmados. No Estado do Rio, de novembro de 2015 a 26 de novembro passado, 163 bebês nasceram com microcefalia associada ao vírus zika. Outros 396 casos da doença estão em investigação.