G1/PCS
ImprimirAos 29 anos, o brasiliense José Jance Granjeiro passou a última década lutando contra cinco cânceres, um a cada dois anos: foram dois melanomas, um tumor no coração, um no cérebro e leucemia. Neste período, o rapaz passou por duas cirurgias, 70 ciclos de quimioterapia e um transplante. Ele nasceu com a síndrome de Li-Fraumeni, que causa o desenvolvimento de tumores.
Atualmente em remissão, o estudante, que já tem duas formações – em jornalismo e em relações públicas –, cursa agora direito na Universidade de Brasília (UnB) e, recentemente, realizou o sonho de conhecer Paris, uma das promessas que se fez depois de enfrentar o último câncer.
Granjeiro diz que a predisposição a desenvolver a doença pode ter começado antes mesmo de ele ter nascido, com a tentativa da mãe, que teve um relacionamento casual com o pai, em abortá-lo. Segundo ele, os medicamentos tomados durante a gestação podem ter provocado uma alteração no DNA que favoreceu o surgimento da síndrome.
“Quando minha mãe descobriu que estava grávida, confrontou meu pai, disse que já tinha uma filha não assumida e que não poderia voltar para a cidade dela com dois filhos de pais diferentes. Meu pai disse que era para ela se virar, que ele não ia resolver”, diz. “Então, ela tentou abortar. Essa tentativa de aborto foi com alguns remédios. Isso foi o que ela mesma me contou, muitos anos depois, quando a conheci, aos 19 anos.”
“Quando nasci, ela me deixou na porta da casa da minha avó paterna”, disse. Ele foi acolhido pela idosa, a quem chama de "mãe", e viveu com ela até os 17 anos. A tentativa de aborto provocou problemas de formação que foram surgindo à medida que o garoto crescia. “Durante a primeira infância, eu tinha o coração maior do que a média. Era um pouco maior do que meu corpo poderia suportar”, diz. O primeiro câncer, um melanoma, surgiu aos 19 anos, com uma pequena pinta no peito. “Ela começou a crescer com uma mancha ao redor dela e coçava muito. Essa mancha era muito disforme, diferente das pintas comuns, que são arredondadas", disse.
“Esse primeiro tumor foi aquele choque. Quando você ouve a palavra câncer pela primeira vez, se assusta, não sabe bem o que é, acha que é sinônimo de morte, acha que não vai sobreviver e é tomado por aquele pavor. Não tem palavra melhor do que ‘pavor’ para traduzir isso”, diz.
Sem conseguir tratamento na rede pública, Granjeiro teve de buscar ajuda em um hospital particular. Para pagar por uma cirurgia de retirada da pinta e quatro ciclos de quimoterapia, ele teve de fazer um empréstimo de R$ 8 mil, que só conseguiu quitar quatro anos depois.
Foram dez meses de tratamento até ficar totalmente livre do melanoma. O segundo câncer, no coração, surgiu dois anos depois, em 2007. “O sentimento então foi de revolta”, diz. “Já tinha problemas respiratórios por conta do coração, mas comecei a sentir muita tontura. Andava e ficava muito tonto e enjoado e começava a vomitar. Às vezes faltava apetite e sentia uma arritmia. Desmaiava dentro de casa.”
Exames apontaram um tumor em estágio inicial dentro do átrio, uma das duas cavidades do coração. Sem necessidade de cirurgia, Granjeiro passou por seis sessões de quimioterapia no Hospital de Base. Foram sete meses de tratamento.
“A sorte foi que descobrimos muito cedo. Tumor no coração é muito raro. Só apareceu porque o primeiro melanoma, que tem alto poder de metástase, passou pelo coração por conta da proximidade. E foi dificil até diagnosticar", diz.
O terceiro tumor, outro melanoma, surgiu dois anos depois, no peito. “A cada ano ímpar, já fico com a orelha em pé”, diz. “Foi então que me perguntei: ‘o que está acontecendo comigo?’ Fui para São Paulo fazer uma bateria do exames, entre eles o Pet-scan, que vira você do avesso. No exame de sangue descobriram a síndrome de Li-Fraumeni, que faz com que as pessoas desenvolvam câncer, principalmente até os 30 anos de idade, e tem a ver com situações hereditárias. Foi então que fui atrás da minha mãe biológica.”
Família
Aos 21 anos, Granjeiro nunca havia tido contato com a mãe. Pela extinta rede social Orkut, ele localizou moradores da cidade onde ela vivia, no interior no Paraná, e conseguiu o telefone dela. “A conversa foi estranha. Ela me contou o lado dela da história, me contou que eu tinha uma irmã, me falou da minha avó, das pessoas de lá, e combinamos de eu ir lá conhecê-la”, disse.
Granjeiro viajou de ônibus durante 27 horas para chegar à cidade da mãe na véspera de Natal. “Minha mãe me contou da relação com meu pai e foi então que me contou da questão do aborto. Ela disse que até tinha enfiado uma vareta de ferro para se perfurar na tentativa de me abortar. Isso me deixou em choque. Ela também disse que tomou uma série de medicamentos”, conta.
“Ela chorou muito, muito, pediu perdão. Disse que não teve maior arrependimento na vida dela, que ela nunca conseguiu casar, não teve nenhum relacionamento depois disso, ficou traumatizada, nunca conseguiu se envolver. E a todo momento ela pedia perdão, pedindo para eu não me afastar dela.”
Granjeiro disse que só conversou com a mãe sobre os cânceres no dia seguinte. “Ela ficou muito mal. Falei que não era para ela se sentir culpada, que não necessariamente era culpa dela, mas que precisava dessas respostas para entender e me cuidar”, diz. “Voltei para casa e continuamos a nos falar por telefone e por carta.”
A relação não foi duradoura. Ao descobrir que o filho é homossexual, a mãe, que é evangélica, passou a condená-lo. “Por telefone, ela falava que Deus não aprovava, que não estava certo, que deveria procurar o caminho de Jesus e coisas do tipo. A partir daí decidi me afastar e nunca mais nos falamos."
Granjeiro diz que a verdadeira mãe dele foi a avó, que até os 70 anos trabalhou na Feira da Ceilândia vendendo roupas e criou sozinha 13 filhos. Ela morreu no ano passado. “Eu chamava ela de mãe. Ela é minha mãe. Ela sempre me educou para a vida. Disse que eu não dependeria dela, do meu pai, de ninguém, porque ninguém estava nem aí. Sempre estudei em escolas públicas, mas ela sempre proveu os melhores livros, sempre me educou para eu aprender. Ela me ensinou a não desistir”, diz.
Novo câncer
Em 2011, os médicos descobriram um novo tumor, desta vez no cérebro, próximo à medula dorsal. “Eram duas bolinhas muito pequenas. Sentia enjoos excessivos, muita dor de cabeça, muita tontura. Às vezes, sem motivo aparente, desmaiava no meio da escada quando descia para levar os cachorros para passear. Passava 20 minutos desacordado. Os cachorros latiam”, diz.
Diagnosticado com câncer pela quarta vez, Granjeiro teria que encarar mais cinco ciclos de quimioterapia, dois por mês. O plano de saúde, no entanto, só cobria dois. Assustado e preparado para acionar a Justiça, o jovem conheceu um oncologista de São Paulo que desenvolve uma pesquisa sobre a síndrome da qual Granjeiro é portador e convidou ele a participar do projeto. A contrapartida seria a gratuidade do tratamento e as passagens para São Paulo.
“Ele identificou que tenho em grande quantidade a enzima metaloproteinases da matriz, que facilita o tratamento contra o câncer, porque permite que a medicação identifique quais são as células cancerosas pelo comportamento delas”, diz. “As enzimas ajudam a levar o medicamento para as células certas e ajuda a combater a doença.”
De acordo com Granjeiro, os médicos explicaram a ele que todas as pessoas que desenvolvem a doença passam a produzir essa enzima. “Todos os tratamentos que fiz depois do primeiro e segundo tumores foram muito mais rápidos. O primeiro levou dez meses, o segundo quatro e depois três meses, porque o corpo já tinha maior facilidade de identificar onde estão as células cancerosas.”
Por conta da grande quantidade de enzimas que ele tinha no sangue, a quimioterapia também provocava cada vez menos efeitos coleterais. “Claro que tinha dor, sangramento, queda de cabelos, pelos, os dentes ficavam roxos, a visão ficava turva”, diz.
Em abril de 2013, um novo revés: Granjeiro foi diagnosticado com leucemia. A doença foi descoberta nos exames rotineiros feitos em São Paulo. “Estava com anemia e meu ouvido sangrava. Fiz quatro meses de quimioterapia antes de entrar no banco de transplantes, mas não resolveu. Em julho, encontrei um doador, mas a média de espera é de dez meses, dependendo do tipo sanguíneo.”
O transplante de medula, segundo Granjeiro, é uma experiência dolorosa. “Para quem recebe, é muito pior do que para quem doa. Você tem que fazer uma superquimioterapia, que é dez vezes mais forte do que a normal, para destruir toda a medula do seu corpo. A dor desse procedimento é quase insuportável. Te dão morfina e uma série de medicamentos para segurar. Foram quatro horas de procedimento. Apaguei no meio do processo”, diz.
Durante todos os tratamentos, Granjeiro diz que as únicas pessoas que permaneceram ao lado dele foram os amigos, com quem vive há anos. “Eles são minha família. Temos uma relação tão mais forte e tão mais sincera que tenho com minha família de sangue. Quem sempre me deu suporte foram eles e, sem eles, não daria conta”, diz.
Foram 25 dias dias internado no hospital. “Essa medula tem que reconstruir no seu corpo, e o período é de aproximadamente 30 dias”, diz. “Quando voltei para Brasília tinha que ir ao hospital todos os dias tirar sangue, ver como estava a quantidade de glóbulos vermelhos. No fim do ano, me deram o laudo de que eu já estava em remissão. Não se fala em cura de leucemia, se fala em remissão. São cinco anos até dizer que está curado, porque ela tem uma chance muito grande de voltar.”
Paris Com a notícia da recuperação, Granjeiro decidiu realizar um sonho antigo e conhecer a França. “A viagem para Paris era um sonho. Desenvolvi uma teoria de que quando você sofre alguma coisa, tem que ter uma recompensa. Eu me propunha a um objetivo para amenizar a dor. Paris era um sonho, lugar que sempre quis conhecer. De onde venho, família pobre, morava na Ceilândia, era algo muito impossível de se pensar.”
O jornalista diz que conhecer a Torre Eiffel foi o ponto alto da viagem. “Foi recompensador. Tive aquela sensação de que se você quiser você consegue. Vale a pena não desistir”, diz.
Dois anos se passaram desde o último câncer, e o jornalista conta que a saúde está em dia. A esperança é que, como cumpre 30 anos em breve, a "década dos cânceres" tenha passado. “As chances são menores depois dos 30 e a cada ano que passa. Se houver algum sinal, ele será identificado com antecedência. A regra básica de qualquer tumor é: quanto mais antecedência na medicação mais tranquilo o tratamento. Tenho medo? Tenho. Mas nem de longe o pavor que senti nas primeiras vezes em que nem sabia como iria pagar para me tratar.”
Granjeiro afirma que atualmente faz acompanhamento com um grupo de médicos que pesquisa no sangue dele a enzima metaloproteinases da matriz (MMP-8), que ele produz em alta quantidade e pode ter contribuído nos sucessivos tratamentos contra a doença e na redução dos efeitos colaterais da quimioterapia.
O geneticista Gustavo Guida afirma que a síndrome é muito rara no mundo todo e provoca cânceres incomuns. “Mais de 90% dos pacientes que têm a síndrome podem apresentar algum tumor ao longo da vida, que é muito mais do que a população em geral. Grande parte deles apresenta ainda nas primeiras décadas de vida.”
“A Li-Fraumeni é causada pela mutação do gente TP53. Esse gene, na verdade, está envolvido em praticamente todos os tipos de cânceres, tumores, com idade precoce, muitas vezes em múltiplas ocorrências. São tumores incomuns em situações incomuns, como câncer de pulmão em homem que não é fumante, câncer de mama em menina jovem, tumores cerebrais, da glândula adrenal, que não é comum”, exemplifica o geneticista.
Ele afirma que o uso de abortivos pode provocar malformação do feto, mas não tem conhecimento de pacientes que tenham desenvolvido a síndrome por esse motivo. “Não sei o medicamento que a mãe teria tomado. Os medicamentos abortivos provocam sim malformação ou aborto, mas não costumam ser carcinogênicos e não são provocadores de câncer propriamente”, diz.