Época/PCS
ImprimirAos 21 anos, por quatro meses, o assistente social paulista Dan, hoje com 34 anos, passou por sessões semanais com uma pessoa apresentada a ele como psicólogo por integrantes de uma ramificação da igreja evangélica frequentada por seus pais. Dan era ensinado a falar e a andar. Não tinha nenhuma sequela motora ou cognitiva a ser corrigida, causada por doença ou acidente.
O “mal” que assolava Dan era a homossexualidade. “O (dito) psicólogo, acompanhado sempre por um pastor, dizia que eu tinha aprendido a ser gay em algum momento da vida, por conta de conflitos com o meu pai e porque sofri um abuso na infância”, diz Dan. “Achavam que, se eu aprendesse a andar, falar e me comportar de uma maneira que eles não achassem afeminada, eu aprenderia a ter desejo pelo sexo oposto.”
Dan não chegou à última etapa do tratamento, a internação em uma clínica mantida pela igreja em uma área afastada de Guarulhos, em São Paulo. Libertou-se antes. Não da homossexualidade, tratada pela igreja e por seus pais como doença a ser curada. Mas das explicações pseudocientíficas sobre sua orientação sexual, dadas entre orações e leituras da Bíblia. Dan reconstruiu sua vida longe do pai, da mãe e dos dois irmãos, que se mudaram, deixando-o na antiga casa da família.
Hoje, faz mestrado sobre políticas sociais e diz não ter conflito a resolver sobre sua orientação sexual. Mas não esquece as marcas: viveu crises de pânico e depressão ao tentar sobreviver ao que ele define como “o caos” instalado pela experiência durante a descoberta de sua sexualidade. “Eu só me submeti a isso porque queria ser aceito”, diz Dan. “Você chega à terapia porque a sua família e a sociedade dizem que você está vivendo uma vida errada. A reorientação só reafirma isso.”
Uma decisão judicial de 15 setembro cria uma brecha perigosa para transformar em normalidade situações como a vivida por Dan, em um consultório psicológico improvisado em uma propriedade de igreja. A liminar, concedida pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, a um grupo de 23 psicólogos, determina que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reinterprete uma de suas resoluções.
A diretriz da entidade, de 1999, estabelece as normas de atuação dos psicólogos sobre questões sexuais – e veta que ofereçam ou participem de serviços que proponham “tratamentos e cura das homossexualidades”. A liminar do juiz determina ao Conselho “que não interprete (a resolução) de modo a impedir os psicólogos de promover estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”. Nos últimos cinco anos, três psicólogos foram denunciados ao Conselho pela prática. Dois foram cassados e um recebeu advertência pública.
Em sua decisão judicial, Carvalho não anula a resolução nem afirma que homossexualidade é doença. Mas torna aceitável o tratamento, como alerta o CFP, apoiado por especialistas e militantes de direitos civis. “O juiz manteve a resolução viva, mas a transformou em letra morta”, afirma o psicólogo Pedro Paulo Bicalho, diretor do CFP.
A entidade recorreu contra a decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Usou um agravo de instrumento – recurso jurídico cabível quando uma decisão provisória, como a liminar, ameaça causar dano permanente a alguém. Há controvérsia também sobre a necessidade de a Justiça arbitrar a respeito da questão, puramente técnica. “Os órgãos profissionais podem, sim, vetar certos tipos de condutas”, afirma o professor de Direito Enéas Matos, da Universidade de São Paulo.
O debate legal também ocorre em outros países (leia o quadro abaixo). A proposta aparece sob expressões como terapias de reorientação ou (re)conversão sexual. “São termos que querem conferir cientificismo à velha ideia de cura gay, mas não passam de pseudociência”, afirma o psicólogo Oswaldo Rodrigues Junior, do Instituto Paulista de Sexualidade, em São Paulo. O veto da psicologia à prática se baseia num argumento simples: não é ético um profissional de saúde física ou mental oferecer tratamentos sem comprovação científica e causadores de sofrimento para condições que não são doenças.
Em 1973, a homossexualidade foi retirada do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria. O fortalecimento de movimentos sociais de então forçou os especialistas a rever a classificação. A homossexualidade não atende a requisitos como ser causada por patógenos ou provocar sofrimento. “Eventuais conflitos têm origem na sensação de inadequação causada por preconceitos da sociedade”, afirma a psicóloga Anna Paula Uziel, coordenadora do Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Em 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças e estendeu a orientação a todo o mundo.
O grupo de 23 psicólogos brasileiros que entrou com a ação defende o direito de os profissionais ajudarem a reorientar pacientes que manifestem esse desejo. “Apesar de sentir atração por pessoas do mesmo sexo, o paciente não se sente bem. Ele traz essa demanda e a gente não pode trabalhar nessa perspectiva?”, diz Adriano Lima, de São Paulo, um dos autores da ação.
Segundo o consenso científico, há condutas previstas para esse tipo de condição, conhecida como orientação sexual egodistônica. “Cabe ao psicólogo desconfiar das causas desse conflito e fortalecer o paciente para ele exercer a sexualidade que quiser e escolher, sem direcionamento”, afirma Anna, da Uerj. Segundo o Conselho, a entidade nunca proibiu que profissionais e pacientes discutam questões da sexualidade. “Mas não cabe ao psicólogo tentar reverter orientação sexual. É o mesmo que propor embranquecer um negro que sofre com preconceito”, afirma Bicalho, do CFP. Em um trabalho publicado em 2009, Bicalho diz que, de 400 homossexuais entrevistados por ele, 70% afirmaram já ter sido encaminhados para “tratamento”. Na metade dos casos, a determinação partira dos pais.
Não existe evidência científica de que seja possível orientar a sexualidade. Em 2009, a Associação Americana de Psicologia publicou a análise de 75 estudos sobre o tema e encontrou apenas seis com metodologia rigorosa – nenhum achou prova de eficácia. Antes disso, em 2001, um único trabalho favorável à reorientação chegou a ter algum crédito. Mas, depois, foi desmentido pelo autor. O americano Robert Sptizer, um grande nome da psiquiatria que ajudou a definir o sistema de dignósticos que vigora até hoje, morreu em 2015 arrependido pelo trabalho equivocado. Na retratação, publicada em 2012, reconheceu que não usara parâmetros confiáveis – apenas o relato de pacientes. “Devo desculpas a qualquer gay que tenha desperdiçado tempo e energia em terapias reparativas”, escreveu.
Há evidências científicas de que a tentativa de reorientação, além de consumir dinheiro, tempo e energia, também faz mal. Em um estudo com 176 pessoas para quem a terapia falhou, 155 mostravam sinais de danos psicológicos de longo prazo. A sensação de inadequação e fracasso gerou mais depressão, abuso de substâncias e tentativas de suicídio. “Esse tipo de ‘terapia’ pode agravar a orientação egodistônica, não resolvê-la”, afirma o psiquiatra Jairo Bouer. Os sentimentos de Dan, cuja história abre esta reportagem, seguiram a cartilha da reorientação fracassada, após a experiência no consultório da igreja. “Me senti humilhado e fiquei mais deprimido. Pensei em suicídio”, afirma. Passou da hora de ninguém mais sofrer por esse motivo.