IstoÉ/PCS
ImprimirDa lancha que navega pelas águas marrom-escuras do rio Cuiabá, no Pantanal mato-grossense, a grandeza das árvores nas duas margens hipnotiza. É uma muralha de troncos, folhas e flores cobertos por cipozais que lembra a cortina de um teatro. Aqui e ali, uma fresta surge e permite ao turista espiar o que se passa mata adentro.
Por uma dessas aberturas, em uma manhã de sexta-feira de maio, uma onça-pintada é avistada. A lancha chega mais perto e para. O guia turístico que acompanha a expedição aproxima o indicador da boca pedindo silêncio. O animal se incomoda com a presença humana, se levanta, emite um som característico, o esturro, e volta para o meio do mato.
Atrás dela vai outra onça, provavelmente uma fêmea. Outro esturro. “Ela deve estar a uns 20 metros daqui”, diz o barqueiro, morador local e conhecedor das métricas da natureza, para em seguida pegar o esturrador e imitar o som do bicho na tentativa de fazê-lo reaparecer. Nada.
No dia seguinte, da mesma lancha se vê um casal por trás de cipós. Emitem sons agressivos, como se estivessem copulando. A lancha segue a viagem pelo rio e, na volta, ao passar pelo mesmo lugar, cruza com o macho, um animal de mais de 100 quilos, deitado no topo do barranco, descansando, depois do fim do acasalamento.
“Viram a onça?”, pergunta à reportagem uma guia que acabava de voltar de um passeio com duas turistas estrangeiras. O semblante de satisfação depois da resposta positiva tem a ver com uma mudança de perfil do turismo no Pantanal na última década.
Tradicionalmente focada na pesca, a região tem recebido visitantes interessados em avistar o maior felino do continente americano em seu habitat natural. “A maioria dos guias começou a trabalhar com isso nos últimos dez anos”, afirma Fernando Rodrigo Tortato, pesquisador da ONG Panthera e doutorando em Ecologia e Conservação da Biodiversidade na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Coincidentemente, há indícios de que no mesmo período a população do animal, ameaçado de extinção em alguns biomas, aumentou em regiões do Pantanal. O crescimento pode ser justificado pelo fim do comércio ilegal de peles na década de 1980, o abandono de fazendas de gado e uma maior conscientização sobre a importância de conservação da espécie.
Em relação ao último ponto, pesa o fator financeiro: a arrecadação do turismo de avistamento da onça chegou a R$ 23 milhões anuais, número divulgado por Tortato em estudo feito em parceria com a University of East Anglia, no Reino Unido.
COCA-COLA NO SAARA
O maior risco para a espécie é o homem, mais especificamente os pecuaristas. “Na cabeça de alguns, onça boa é onça morta, já que ela entra nas propriedades para caçar gado”, afirma Júlio César Sampaio, coordenador do Programa Cerrado Pantanal da ONG WWF-Brasil. “Por isso, temos que trabalhar para promover uma convivência harmônica com a fauna e a flora locais”, diz, reiterando que o ecoturismo pode ser benéfico para a preservação.
Segundo Tortato, enquanto o lucro promovido pela onça chega na casa dos milhões, o prejuízo que o animal causa para o mercado de criação de gado é de cerca de R$ 400 mil. “O turismo traz novas oportunidades econômicas para as fazendas e está mudando a percepção que as pessoas possuem em relação à onça. Antes, era associada a perdas no rebanho e agora representa um dos principais atrativos”, diz Tortato.
Apesar de disseminada, o turismo de observação é mais praticado pelo público estrangeiro. Mais de 90% dos visitantes vêm de outros países. Pesa o custo da viagem. Uma diária em uma pousada, incluindo passeios e refeições, ultrapassa os R$ 1 mil por pessoa. “É caro, mas brinco que é como uma coca-cola no deserto do Saara”, afirma Ivan Freitas da Costa, um dos sócios da pousada Porto Jofre Pantanal Norte, no final da rodovia Transpantaneira. “Estamos a 250km de Cuiabá.
Trazer mão de obra e produtos até aqui é difícil.” Mas também conta a questão cultural. “No Brasil, ainda temos uma população que pouco conhece sobre nossa fauna e flora e, por consequência, tem pouco interesse por elas”, diz Tortato.
O lucro e a fera Qual a relação entre a onça pintada e a geração de renda no Pantanal
R$ 22,7 milhões É a receita anual promovida pelo turismo de observação da espécie na região
20% Foi o aumento da capacidade de ocupação das pousadas ao longo da Transpantaneira entre 2010 e 2016
Há 10 anos A prática do avistamento da onça pintada tem crescido a ponto de aumentar o número de hospedagens e de guias especializados
80% Dos turistas do Pantanal aceitariam doar uma quantia para compensar as mortes de gado causadas pela onça e, assim, impedir que o animal seja morto por pecuaristas