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ImprimirAos nove anos, a pequena Agatha é definida pelos pais como uma criança que gosta de brincar, que dá trabalho para fazer a lição de casa e é, sobretudo, amada profundamente pela família. Foi a partir desse acolhimento que, aos quatro anos, ela teve a liberdade para dar início à própria transição de gênero.
O “nascimento” de Agatha apresentou aos pais um universo de possibilidades e conceitos até então desconhecidos. Ao buscar respostas para os próprios questionamentos, Thamirys Nunes, de Campinas (SP), criou em 2022 uma organização não governamental (ONG) para ajudar outras pessoas que pudessem estar passando pela mesma angústia.
O meu filho morreu não foi dentro de um caixão. Meu filho morreu dentro de um vestido, e eu posso dizer que dói tanto quanto. Mas a minha filha nasceu lindamente aos 4 anos, e vê-la desabrochar, sorrir frouxo, poder ser quem ela é... só deixar ela ser uma criança livre pra existir e me dizer como ela se sente respeitada foi libertador, foi realmente libertador. — Thamirys Nunes, mãe da Agatha e criadora da ONG Minha Criança Trans
Segundo Thamirys, a ONG Minha Criança Trans atende 650 famílias em todo o território brasileiro, além de 75 famílias que residem no exterior, com crianças de 3 a 18 anos. As frentes de atuação da instituição incluem questões de saúde, qualidade de vida, políticas públicas e garantia de direitos, formando uma rede de pais e responsáveis lutando contra o preconceito.
🌈 A história de Agatha Maria junto à família também é o tema de uma reportagem que vai ao ar nesta sexta-feira (28), data em que é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBT, no Jornal da EPTV 2ª Edição.
Da frustração à ação
A ideia de criar um coletivo para pais e mães de crianças e adolescentes trans veio de um episódio de frustração. Pouco tempo depois da transição de Agatha, Thamirys foi impedida de embarcar com a filha em um ônibus por não ter um documento com o nome social da criança.
“Aí eu cheguei e falei: 'A partir de hoje, eu vou começar essa luta'. E essa luta começou. Então eu comecei com o Instagram, com o meu livro, acolhendo mães de forma muito independente, até que nós viramos um coletivo”, lembra a mãe.
Atualmente, a ONG atua nas seguintes frentes:
Acolhimento: receber os pais, conversar, dar encaminhamentos e orientações sobre questões de nome social, por exemplo.
Formação: cursos e consultorias em diversidade dentro de empresas e escolas.
Mediação de conflitos com escolas: para casos em que a instituição de ensino não permita o uso de nome social ou do banheiro.
Políticas públicas: definida como uma litigância estratégica na tentativa de construir uma agenda no país para falar sobre crianças trans.
Saúde mental: cursos para profissionais da área, além de reunir profissionais voluntários para atender famílias com vulnerabilidade econômica.
'Mamãe, posso morrer hoje pra nascer menina amanhã?'
Quem vê a família de Agatha na “linha de frente” da luta contra o preconceito não imagina a jornada pela qual pai, mãe e filha precisaram passar. Isso porque a menina foi a primeira pessoa trans com quem Thamirys, criada em um contexto conservador, teve contato.
A percepção da mãe sobre a necessidade de deixar a filha livre para explorar a própria identidade veio quando Agatha tinha 3 anos. “Ela falou pela primeira vez: 'Mãe, sabe o que é triste? É triste que Deus não me fez menina, eu seria tão mais feliz”.
“E aí com três anos, 11 meses e 15 dias, ele me disse: 'Mãe, eu posso morrer hoje pra nascer uma menina amanhã?'. E a minha única reação foi falar: 'Pelo amor de Deus, não morre. O resto a gente dá um jeito'", relata.
As afirmações da menina fizeram com que a família procurasse a orientação de especialistas e, assim, desse início à transição e a “um processo de descoberta de um universo totalmente novo”. No caso de Agatha, por ser menor de idade, o processo não inclui o uso de terapias hormonais ou cirurgias.
E é isso que eu questiono as pessoas que falam que crianças trans não existem, que eu sou maluca. O que vocês queriam que eu fizesse? Que eu brincasse com a vida? Que eu deixasse essa criança ficar pensando em morrer até quando? Até quando eu conseguisse? E eu não ter mais ninguém pra amar? Eu prefiro amar minha filha trans do que não ter ninguém na minha casa. — Thamirys Nunes, mãe da Agatha e criadora da ONG Minha Criança Trans
Para Fábio Cassali, pai da Agatha, o processo de transição de gênero da filha foi também uma forma de ressignificar amizades, prioridades e conceitos. “A gente teve um processo bem doloroso. Mas nunca, em nenhum momento, a gente pensou em forçar, em castigar, em reprimir. A gente só queria entender”, conta.
“As pessoas querem rotular as pessoas em caixinhas que elas não cabem, gerando um sofrimento imenso. Quando eu vejo a Agatha se colocando e ocupando o seu espaço, e aprendendo a ser quem ela é sem vergonha, sem nenhuma vergonha, sem nenhum pudor, 'eu sou esta menina que aqui está', isso, para mim, é um motivo de muito orgulho”, diz Fábio.
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Infância e transexualidade
Médico endocrinologista, metabologista e especialista na saúde de pessoas trans, Júlio Américo explica que a relação entre crianças e transexualidade “é algo natural que sempre existiu, não é uma moda atual, isso é algo que a gente está estudando e conhecendo mais atualmente”.
"Não é algo que a criança aprende ou que a gente consiga influenciar, é um desenvolvimento natural, assim como ser uma pessoa cisgênero [que se identifica com o gênero designado ao nascer]. Então, basicamente, uma criança trans é aquela criança que se identifica num gênero que é diferente daquele que é designado ao nascimento", detalha.
Segundo o médico, crianças trans podem começar a mostrar desconfortos com algumas situações, como brincadeiras ou até penteados, a partir dos 2 anos de idade, demonstrando para os pais a vontade de aderir a comportamentos esperados para outro gênero.
“Um menino gostar de brincar de boneca ou uma menina gostar de brincar de carrinho não significa que essa criança vai ser trans no futuro, mas significa que essa criança gosta de participar de brincadeiras ou performar alguns tipos de atitude tidos como de outro gênero e está tudo bem. [...] O nosso papel não é ser taxativo e, sim, permitir que a criança consiga brincar e explorar esse próprio gênero de uma maneira segura”, destaca.
José Luiz Egydio Setúbal, pediatra e presidente da fundação que leva seu nome, pontua que o maior desafio para a área da saúde em relação à transexualidade é o diagnóstico, já que o Brasil conta com apenas sete centros especializados e ainda enfrenta preconceitos.
"O papel dos órgãos de saúde, das sociedades de pediatria e das universidades é fazer com que as pessoas entendam que a criança transgênero existe porque é uma característica genética e não um problema de sexualidade", afirma.
“É preciso um tratamento sério, acompanhamento psicológico e de outros especialistas. A criança trans e todas as pessoas trans precisam ser tratadas e acolhidas com a maior seriedade possível. São pessoas”, finaliza o pediatra.