\n \n Maria de Jesus, aos 68 anos é faxineira. Simar trabalha de\n segunda a segunda. Solange é aposentada e dona de casa. Os três moram em São\n Paulo. Não se conhecem. Mas estão unidos por um sentimento comum. O mesmo que\n atormenta milhões de pessoas Brasil a fora. A angústia de viver endividado.\n \n
O carro está velho de fazer dó. Mas é\n nele que Simar vai à luta. O negócio nem sempre vai bem. Pior são as contar pra\n pagar.\n \n “É duro, não é fácil não. Se mostrar\n para vocês a minha dívida, vocês ficam até louco. E vai aumentando cada vez\n mais”, diz Simar Arcanjo Nunes.\n \n
A derrocada começou há tempos. Simar\n comprou um carro para passear.\n \n “É difícil. O carro vale R$ 15 mil,\n R$ 16 mil, R$ 17 mil no máximo. Tô pagando quase R$ 70 mil. Porque infelizmente\n tive que financiar. Eu estava com a cabeça fraca no dia que fiz o negócio e me\n arrependi. Fui lá na agência, mas o vendedor disse que não tinha jeito”, conta\n Simar.\n \n
Depois, começou a reformar a casa.\n \n
Globo Repórter: O senhor fez quantos\n cartões de crédito?
\n Simar: Três. Para comprar material.\n \n
Até que aconteceu o acidente.\n \n
“Eu caí de uma laje que eu tava\n construindo. Fiquei internado 17 dias na UTI, fiquei mais 40 dias parado e já\n estava devendo. Só vinha cobrança. Eu na cama e todo mundo cobrando. A gerente\n me ajudou porque eu ia lá e pedia para aumentar um pouco o cheque especial. Ela\n foi aumentando, coitada, ela não tem culpa de fazer isso. Ela tava me\n ajudando”, explica Simar.\n \n
Será mesmo? Para a diretora do\n Procon, essa ajuda é uma ilusão traiçoeira.\n \n
“As pessoas que nos procuram estão há\n 10 anos fazendo um novo empréstimo,um novo empréstimo, refinanciando na própria\n instituição. A instituição diz que está ajudando, mas ela também está afundando\n mais”, revela Vera Remedi, do Programa de Apoio ao Superendividado – Procon/SP.\n \n
É um verdadeiro desastre financeiro.\n Começa com uma pequena dívida. Aos poucos vai se formando uma teia de parcelas,\n juros, empréstimos aqui para cobrir outros ali. É dessa forma que os\n consumidores brasileiros atingiram o nível mais alto de endividamento dos\n últimos 10 anos. Pesquisa da Federação do Comércio comprovou: o número de\n famílias com contas atrasadas é o mesmo. Foram as dívidas que aumentaram.
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\n “As pessoas acabaram contraindo dívidas para pagar dívidas. Tomando\n financiamentos a juros mais baixos para pagar os financiamentos mais caros”,\n explica Antônio Carlos Borges, diretor executivo da Fecomérscio-SP.\n \n
Hoje, Simar nem sabe mais o quanto\n está devendo.\n \n
“Peraí que eu vou dar tudo detalhado\n aqui; eu sei, eu somei tudo, tenho somado em algum lugar aí. Eu tenho...peraí”,\n fala Simar.\n \n É mais comum do que se parece. Basta\n um imprevisto e a pessoa perde toda a organização das contas pessoais.\n \n
“A maioria por fatores que não\n dependem dela. Diminuição de renda, desemprego, problemas de saúde, problemas\n relacionados com morte na família, separação, divórcio. Várias situações em que\n altera... Qualquer pessoa que não tenha uma renda reservada para algum\n infortúnio, quando esse infortúnio vem, faz com que ela perca o controle”,\n ressalta Vera Remedi.\n \n
Para não correr esse risco, a receita\n é matemática.\n \n
“Você não pode comprometer mais de\n 30% de sua renda em dívidas. Esse é o pecado”, diz Antônio Carlos Borges.\n \n
“Quando ele compra o carro ou a\n geladeira, ele esquece de somar todas as outras dívidas que tem”, comenta a\n repórter Isabela Assumpção.
\n “E mais. Não é só os 30%. É pegar os 10% da renda da família e deixar de lado\n para eventualidades. Então os 40% da renda têm que estar reservados para isso”,\n aconselha o especialista.\n \n
Globo Repórter: Tem algum momento que\n o senhor consegue não pensar nisso?
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Simar: Eu deito na cama, o diabetes sobe. Eu levanto, vou para cima da laje\n tomar ar. Do jeito que tá indo, vou falar pra senhora, tô com medo do que vai\n acontecer.\n \n
“Eu sinto medo da cobrança. Eu me\n viro nos trinta para não ser cobrada”, diz Maria de Jesus.\n \n
Medo. Todos os dias. Há 9 anos. Maria\n de Jesus começa a se virar quando o dia está amanhecendo.\n \n
Maria de Jesus Silva: O mês passado e\n esse mês eu trabalhei todos os domingos, porque eu queria ajudar a pagar os\n exames da minha irmã.
\n Globo Repórter: Mas a senhora já tá cheia de divida, como é que vai ajudar?
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Maria de Jesus: Mas a minha irmã tá pior que eu.\n \n A faxineira está atolada nas contas.\n Somando o que ganha fazendo limpeza, com uma pequena aposentadoria, não dá o\n suficiente para cobrir os atrasados. Pra viver, então, nem se fala.\n \n
“Alimentação eu faço no cartão. Aí\n vem o boleto, eu pago. Termino de pagar e faço o cartão de novo. Quer dizer que\n você nunca tem o dinheiro para ir lá, fiz a compra e paguei. Eu fiz a compra,\n mas o mês que vem vai cair o boleto. Eu to comendo uma coisa que não é minha,\n que eu vou pagar o mês que vem”, conta Maria de Jesus.\n \n
Tudo começou com um sonho. E um\n emprestimo consignado de R$ 9 mil.\n \n “O primeiro consignado que eu fiz foi\n para comprar essa casa no interior. Eu queria comprar uma casa no interior. Se\n eu não tivesse feito o primeiro emprestimo, escuta bem o que vou te falar, eu\n tinha juntado dinheiro e comprado a minha casa a vista, sem precisar de\n emprestimo. Depois de tudo isso que eu to pagando, há nove anos que eu to\n pagando, não saiu nunca”, revela Maria de Jesus.\n \n
Viuva, mãe de um filho doente, dona\n Maria tem vergonha de pedir orientação.\n \n
Globo Repórter: A senhora entende bem\n esse mecanismo de emprestimos, juros?
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Maria de Jesus: Não, se eu entendesse eu não faria o que fiz.\n \n “Ninguém se endivida, se\n superendivida de propósito. Então, a pessoa foi mal orientada, não recebeu\n informações sobre os contratos, não sabe o custo efetivo total de uma operação,\n não sabe quanto vai pagar no final”, destaca Vera Remedi.\n \n
“Eles falam assim ‘você vai ter\n direito a tanto’. ‘Mas eu vou pagar em quantas vezes?’. ‘5 anos’. Depois que\n você faz é que você vai acordar: ‘gente eu fiz uma burrada’. Agora é tarde. Vou\n passar cinco anos carregando essa cruz”, diz Maria de Jesus.\n \n
É quase impossível resistir a tanta\n oferta. Empréstimo consignado aprovado na hora, crédito extra para quem já tem\n o salário comprometido, dinheiro na mão até para quem tem o nome sujo. O cerco\n ao consumidor promete transformar qualquer sonho em realidade, em parcelas a\n perder de vista. Uma tentação.\n \n
Solange não conseguia resistir a uma\n tentação. Via na vitrine e, pronto.\n \n “Eu acho que eu gosto de coisa boa,\n só. É um problema, né?”, diz Solange Sampaio, aposentada.\n \n
No passado, Solange não tinha do que\n se queixar. Vida tranquila, casa própria, marido bem empregado, finanças em\n ordem. Até que, de repente, o marido morreu.\n \n
“Pela perda dele eu me descontrolei.\n Eu tinha que ser pai e mãe, fiquei muito ansiosa, consegui fazer algumas\n coisas. Minha filha se formou, paguei faculdade, carro, mas era uma coisa que\n estava fugindo, porque o emocional tava ultrapassando a parte real da minha\n vida”, revela Solange.\n \n
Quando somou todos os gastos, o rombo\n era assustador. Estava devendo R$ 80 mil. O caminho para sair desse sufoco ela\n encontrou no Procon. Lá, um programa em parceria com o Tribunal de Justiça está\n ajudando os superendividados a buscar uma conciliação com os credores. A ideia\n é, todos juntos, fazerem um novo calculo das dívidas para que o devedor consiga\n pagar.\n \n
Globo Repórter: Quando você iniciou a\n negociação com o Procon, você tinha quantos credores?
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Solange: 13, entre lojas e bancos.\n \n
“No momento que percebem que podem\n sair daquela situação, que existe um local que ela pode ser ouvida, que pode\n renegociar sua dívida, que o credor vai vir, vai ouvi-la e fazer uma proposta\n decente, ela já começa a melhorar”, afirma Vera Remedi.\n \n
Conciliação feita, Solange pôs ponto\n final nas contas penduradas. E mais: aprendeu nas palestras a só comprar o que,\n de fato, pode pagar.\n \n “Eu só compro hoje se eu tiver o\n dinheiro, porque é muito mais leve sair da loja sem estar devendo nada para\n ninguém”, diz Solange.\n \n
O segredo de tamanha segurança? Um\n caderno, o orgulho de Solange.\n \n
Globo Repórter: O que você marca aí?
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Solange: Marco o que eu recebo e o que eu gasto. Não dá trabalho, acho que dá\n muito mais trabalho ficar com uma divida grande e não conseguir dormir\n \n
Simar também procurou o Procon. Ele\n vai tentar um acordo com os principais credores.\n \n
“Minha divida tá em R$ 49.263,45”,\n diz Simar.\n \n Ao final da discussão, acordo\n fechado. Agora, Simar vai pagar prestações que cabem no que ele ganha.\n \n
“Quanto mais simples é a pessoa, mais\n honesta ela é, mais ela fica endividada. Ela vai atras de tudo para não\n negativar. Ela quer pagar. São pessoas honestas que querem pagar, porque o nome\n é uma questão de honra”, afirma Vera Remedi.\n \n
Com a vida em ordem, os antigos superendividados\n ganham o direito de voltar a sonhar. Lembra da Solange, que só gosta de coisa\n boa? Pois ela já está com novos planos.\n \n
Globo Repórter: É a área da piscina?
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Solange: Isso, meu filho já fez o projeto, só falta o arquiteto.
\n Globo Repórter: Você tem dinheiro?
\n Solange: Tenho. Tá escondido.
\n Globo Repórter: Não vai ficar devendo pra ninguém?
\n Solange: Não. Depois eu faço uma entrevista dizendo de onde veio e pra\n comemorar. Vai ficar tão lindo.\n \n