O Globo/LD
ImprimirA fonte da juventude jorra dinheiro e movimenta milhões de pessoas em busca da beleza mais perene possível. São 4,1 milhões de trabalhadores em toda a América Latina que formam um exército quixotesco contra o tempo. É um mercado que, só no Brasil, atinge R$ 45,2 bilhões, o equivalente a um quarto do superávit comercial brasileiro com o exterior previsto para 2019, e vende anualmente 2 bilhões de itens — quase cinco cremes, batons ou perfumes por brasileiro, colocando o país como o 6º maior negócio de beleza do mundo.
No movimento mais recente, a empresa brasileira de beleza Natura comprou a concorrente Avon, um ícone da cultura americana. A criação da Natura Holding envolverá trocas de ações e um desembolso de US$ 530 milhões (mais de R$ 2 bilhões) em favor dos acionistas da empresa americana e elevará a importância do Brasil no cenário mundial da venda direta.
As duas empresas tinham situações financeiras muito diferentes, com a concorrente americana sendo o patinho feio da negociação. A Avon passava por dificuldades, perdia seu apelo em produtos para o público jovem e enfrentava problemas logísticos de distribuição e no relacionamento com as consultoras. Com a aquisição, a Natura, que ficava abaixo da 10ª posição em cosméticos, passa a integrar o top 5 mundial e entra em um patamar de competição global com as gigantes L’Oréal e Estée Lauder.
“Em uma visão geral, a operação é positiva. Os desafios são de posicionamento das marcas e dos produtos. A Natura tem muito enraizadas questões de ética ambiental e de sustentabilidade. A Avon, não. Será preciso um trabalho de transmissão desse DNA. Por outro lado, a Avon está muito identificada com o empoderamento feminino”, explicou o analista do Brasil Plural Andres Estevez.
O temor inicial do negócio — cuja linha de frente é a venda direta de porta em porta por milhões de consultores associados — era o volume de vendedores comuns às duas marcas. Constatou-se que 500 mil pessoas acumulam hoje os catálogos de Natura e Avon. De acordo com um relatório do BB Investimentos, publicado após a transação, considerando apenas a América Latina e excluindo as consultoras que também faziam parte da base da Natura, a Natura estaria adquirindo mais 2,5 milhões de vendedores na América Latina — o que reforçaria sua presença nos principais mercados da região.
A aquisição das consultoras, aliada ao aumento da proposta de valor para elas por meio da implementação de serviços — tais como aplicativos e carteira digital — que as atrairiam a atender ambas as marcas, deverá ampliar as receitas do grupo.
“Existe uma diferenciação sutil entre os negócios das duas marcas que supera os pontos em comum e faz o território a ser ganho maior. Para as consultoras, também. Com a compra da Avon pela Natura, elas ganham a possibilidade de trabalhar com mais produtos. A maioria das trabalhadoras resolvia focar em apenas uma marca, para não participar de programas diferentes, com regras diferentes. Perdiam mercado com isso. Agora, haverá a possibilidade de aumentar seus públicos, trabalhando para a mesma empresa. Acredito na unificação em questão de capacitação das consultoras e relacionamento com elas e outras políticas. Tudo deve convergir lá na frente”, afirmou Estevez.
Há 35 anos, quando Carla Beatriz Floriano, de 49 anos, entrou para a venda direta, seus catálogos de Natura passavam de mão em mão, e as marcas de uso eram sinais do sucesso. Atualmente, os clientes não precisam mais encomendar nas revistas e aguardar. Devido ao sucesso construído no decorrer dos anos, com a mãe, Maria da Graça Floriano, de 70, o marido, Eduardo Moura, de 58, e a filha, Thais, de 25, Carla Floriano abriu no estado do Rio de Janeiro duas lojas, que têm 90% das prateleiras ocupadas por itens da primeira empresa à qual se associou e da Avon para pronta-entrega.
Com a absorção da Avon pela Natura, Carla Floriano vê a possibilidade de expansão. “Vendo mais maquiagens na Avon e mais produtos de cuidados com a pele na Natura. E percebo que, se não tivesse uma marca, os clientes não seriam transferidos para a outra. São complementares”, afirmou.
Ela começou a vender produtos de porta em porta aos 15 anos. “Houve uma época em que eu tinha de colocar produtos em uma mala e ir de carro fazer as entregas. Fui criando um estoque de produtos comprados quando estavam em promoção e então montei um escritório para atender clientes em minha casa. Em determinado momento, quis crescer e vi que era possível abrir uma loja, alugada, em Niterói.” Doze anos trás, fez as contas e verificou que os custos gerados por uma estrutura física já seriam compensados. Há oito, deu outro passo, abrindo uma unidade própria em Botafogo, na Zona Sul do Rio. Com a expansão do negócio, juntaram-se a ela a mãe, o marido e a filha.
Além da Natura, a família inteira vende outras duas marcas — Mary Kay e O Boticário —, apenas de cosméticos, segmento responsável por mais da metade (54,7%) da participação nas comercializações de venda direta no país, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (ABEVD). Os especialistas creditam a primeira posição, à frente das categorias “acessórios e vestuário” (15,9%) e “cuidados da casa” (6,5%), à vaidade brasileira.
Carlos Cova, doutor em engenharia de produção, afirma que cosmético é um clássico da venda direta, em razão das embalagens de fácil transporte e estocagem e dos preços acessíveis de produtos que tendem a aumentar a autoestima e o bem-estar. “Eles não têm perecibilidade imediata, o que facilita guardá-los durante o ciclo de vendas. Não requerem uma logística de entrada e saída muito complexa, o que facilita o enraizamento do negócio”, afirmou Cova.
O Brasil tem destaque no cenário mundial do setor de venda direta, com a 6ª posição em movimentação financeira, na lista da Federação Mundial de Associações de Vendas Diretas. Há muitas teorias para explicar o sucesso nacional.
“Primeiramente, confiança é algo que importa muito para o brasileiro na experiência de compra. E a venda direta parte disso: comprar com quem você conhece e tem um relacionamento. Mas há ainda toda uma questão logística, pelo fato de chegar aonde o varejo não chega. Em algumas cidades do interior, por exemplo, pode não haver loja ou supermercado, mas o catálogo da venda direta está disponível”, exemplificou a presidente executiva da ABEVD, Adriana Colloca.
Haroldo Monteiro, professor de finanças corporativas da pós-graduação e do MBA do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais do Rio (Ibmec-RJ), atribuiu à instabilidade econômica o grande número de trabalhadores associados à atividade. “Com diversos períodos de desemprego em alta, a venda direta é uma forma alternativa de obter renda. Culturalmente, há uma vocação para esse trabalho por conta própria, com alguns aspectos que são identificados com o empreendedorismo, ainda que a pessoa esteja ligada a uma empresa”, comentou.
O perfil dominante na venda direta é de mulheres que buscam o complemento de renda — elas são seis de cada dez consultores. São mulheres como Carla Floriano, que tira dos catálogos 40% dos ganhos mensais. O faturamento já foi maior, segundo ela, mas caiu devido ao crescimento no número de vendedores, seus concorrentes, e à crise recessiva na qual o Brasil patina.
Os 4,1 milhões de trabalhadores de venda direta no Brasil, dos quais 2,2 milhões são ligados à Natura e à Avon, formam um bloco impressionante, na avaliação da historiadora Cíntia Fiorotti Lima, que pesquisa o tema. “Há um grande fetiche relacionado à venda direta, que é o imaginário de ter horários alternativos, sem a contagem de faltas nos dias em que se deixa de trabalhar, por exemplo.” A realidade é que, embora não haja a figura do patrão, essas pessoas precisam organizar jornadas e rotinas para vender, como estipular dias para divulgar os catálogos, dias para fazer entregas, dias para cobranças, dias para encontrar novos clientes, inclusive para evitar a perda de vínculo com a marca.
A historiadora afirmou que muitos aderem às consultorias acreditando piamente nas mensagens veiculadas pelas empresas. Toda empresa tem critérios para a entrada ou permanência de vendedores em suas linhas, como uma cota mínima de produtos a vender. Então, as trabalhadoras precisam desenvolver estratégias pessoais para construir suas bases de clientes. “Nas entrevistas que realizei, ouvi coisas curiosas, como que elas iam observar estratégias de vendedoras em lojas para aprender ou compravam produtos com desconto para estocar e repassar no próximo ciclo com maior margem de lucro. Outra tática muito comum é a sublocação de venda: deixam o catálogo com outras pessoas e repassam parte da comissão quando efetuam as vendas.”
O comércio por meio da internet trouxe novos desafios, com a exigência dos clientes lá em cima. “Se o cliente pode entrar na internet e fazer a compra ele mesmo, o que fará ele recorrer a uma vendedora? Nesse sentido, ganha cada vez mais importância a figura da consultora de vendas, aquela que tem um conhecimento mais específico, testa os produtos, sabe as qualidades, é uma contadora de história”, afirmou o professor do Ibmec Haroldo Monteiro.
Solange Monteiro, de 48 anos, veio da Bahia para o Rio de Janeiro em 1998, aos 27 , em busca de uma vida melhor para si e os dois filhos — Anderson, então com 4 anos, e Adrielle, com 9. Eles ficaram com os avós, no Nordeste, e ela passou a morar na casa da irmã, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. Trabalhava como empregada doméstica quando enfrentou um episódio traumático: “Minha patroa sentiu o cheiro do creme e achou que eu estava usando produto dela. Foi aí que resolvi revender a marca. Queria dar acesso aos produtos para minha família. Tirava até a comissão e vendia pelo preço de custo. Depois comecei a conquistar meus clientes”.
A autoestima é um aspecto importante do discurso das marcas de venda direta, avaliou Cíntia Lima. “As empresas de cosméticos adotam muitas vezes a estratégia de transformar primeiro a pessoa em consumidora e depois em vendedora. Trabalham expectativas: desde a de deixar a pele mais bonita até possibilitar a compra de um carro”, disse a historiadora, ressalvando que se repetem casos de pessoas que acabam atoladas em dívidas.