G1/LD
ImprimirNa última década, o Brasil viu o número de escolas de educação básica aumentar 12%, de 255.445 para 286.014. No mesmo período, porém, o número dessas escolas que oferecem o ensino de jovens e adultos (EJA) do ensino fundamental recuou 34%, segundo um levantamento feito pelo G1 na série "Adultos sem diploma".
Em 2009, 37.334 escolas tinham turmas do EJA fundamental. Já no ano passado, essa oferta só existia em 24.658 escolas, segundo os dados do Censo que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou no mês passado.
Especialistas ouvidos pelo G1 explicam que a queda na oferta não está apenas relacionada ao aumento da escolarização dos adultos, que provocaria menor demanda. Apesar dos avanços, eles estimam que o número de brasileiros sem diploma varia entre 30 e 40 milhões. O país tem hoje 3,5 milhões de alunos matriculados no EJA, sendo que 59% deles estão no nível fundamental.
Houve queda em todos os estados, e apenas o Distrito Federal registrou aumento no número de escolas com a oferta. No Ceará e em Rondônia, a redução chegou a mais da metade do total de escolas em 2009.
Como consequência do fechamento das turmas, atualmente as pessoas com mais de 15 anos que não terminaram o ensino fundamental só podem encontrar cursos em 8,6% das escolas no país. Ou contar com projetos como o Aprender, do Colégio Pueri Domus, um curso em que os alunos do ensino regular dão aulas voluntariamente no período noturno, e onde a babá Maria das Neves, de 55 anos, encontrou o apoio de que necessitava para finalmente concluir o ensino médio e se matricular na faculdade de pedagogia.
A diferença entre o curso que ela fez e as turmas de EJA mantidas pela rede pública de ensino é que, no segundo caso, não só a turma é presencial e mantida com financiamento do poder público, mas a avaliação feita pela escola também serve para a emissão do diploma de conclusão do curso, assim como no ensino regular.
No caso de Neves, porém, foi necessário realizar um exame de certificação. Ela acabou tendo que passar por quatro tentativas frustradas com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), até que, em 2017, o Inep decidiu retomar a aplicação do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) como prova de certificação do ensino médio.
Assim como Maria das Neves, a maioria dos adultos que fizeram o Enem em busca do certificado não conseguiram a pontuação mínima exigida, de 450 pontos nas provas objetivas e 500 pontos na prova de redação. Mas, entre os demais candidatos do Enem, essa situação não era diferente. Alunos de dia, professores à noite
Inicialmente criado por estudantes para alfabetizar funcionários da limpeza, segurança e do restaurante da escola, o Aprender hoje tem turmas de ensino fundamental e médio e foi ampliado para atender à comunidade do entorno do Itaim Bibi, além de ganhar edições em dois outros endereços. Desde o início, porém, as aulas são ministradas por alunos ou ex-alunos do próprio colégio, no turno noturno e de forma voluntária.
O professor Giuliano Rossini, coordenador de projetos sociais do Pueri Domus, explica que, além de educar os adultos, o Aprender também melhora a disciplina e o rendimento dos estudantes que participam como professores. "À noite ele é professor, então muda a relação dele com os professores, ele entende como é estar lá na frente." As turmas variam entre 3 e 13 alunos e, somando os três endereços, o projeto mobiliza 80 professores voluntários. No Fundeb, aluno do EJA 'vale menos'
Timothy Ireland, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador da Cátedra da Unesco em Educação de Jovens e Adultos, alerta para o fato de que, no Brasil, a oferta de turmas do EJA tem caído nos últimos dados, o que pode dificultar ainda mais o processo de escolarização das atuais gerações de adultos que não concluíram o ensino básico.
Além do acesso mais difícil, o financiamento público das turmas de EJA, que historicamente é o menor entre todas as modalidades da educação básica, também teve o menor crescimento em 11 anos.
Dados do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) mostram que, em 2009, o valor por aluno anual estimado para o EJA desvinculado ao ensino profissionalizante foi de R$ 2.167,03, considerando o valor corrigido pela inflação (IPCA).
Para 2019, esse número subiu até R$ 2.870,94. Apesar do avanço de 32,5%, essa é, atualmente, a única modalidade de ensino em que cada estudante recebe menos de R$ 3,5 mil do poder público.
Já o EJA integrado ao ensino profissionalizante viu seu valor expandir 56,6%, de R$ 2.749,81 em 2009 para R$ 4.306,41 neste ano.
Prioridades políticas
Os dados do Fundeb mostram ainda como as prioridades dos gestores impactaram cada modalidade. Em 2009, o EJA estava empatado com a creche em tempo parcial na posição de "modalidade com menor financiamento público".
Porém, nos últimos 11 anos, o financiamento por aluno matriculado na creche parcial de escolas públicas aumentou 93,1% e hoje é de R$ 4.183,75, 46% maior que o EJA sem vínculo com ensino profissionalizante.
“Não chega a ter 1% de investimento da educação destinado ao EJA. O gestor público acaba preferindo investir na educação de crianças porque tem mais pressão social, jurídica e legal para fazer isso”, afirma Roberto Catelli Junior, coordenador adjunto da ONG Ação Educativa.
José Marcelino de Rezende Pinto, doutor em educação e professor da Universidade de São Paulo (USP), é especialista em financiamento da educação e explica que é difícil descobrir quanto exatamente cada rede pública gasta com o ensino de adultos, porque os professores do EJA são os mesmos do ensino regular.
"Não existe um professor que faz concurso para EJA. Em geral é um professor que dá aula nos anos finais e iniciais do fundamental e também dá aula de EJA. O grande gasto de educação é salário, e o salário desse professor vai sair misturado."
Mas ele ressalta que, já no ponto de partida da divisão dos recursos do Fundeb para os estados e municípios, os estudantes de EJA saem perdendo. Isso porque o cálculo é feito segundo o chamado "fator de ponderação", que usa como base o valor por aluno dos anos iniciais do fundamental. Como o EJA tem fator 0,8, cada estudante do EJA recebe o valor correspondente a 80% do que recebe um aluno do fundamental.
"Os fatores da lei já desestimulam. Se dez alunos de EJA contam como oito, eu como prefeito já não vou me sentir estimulado", diz Marcelino, que ressalta outros fatores de desestímulo à oferta de EJA. "Há uma resistência da própria rede. Como a EJA é à noite, o diretor tem que abrir escola de noite", ressalta. Oferta e demanda
Segundo Catelli, o Censo de 2010 apontava que 9,6% da população com 15 anos ou mais no país era analfabeta, e 34,7% dos adultos tinham o ensino fundamental incompleto.
Ireland diz que a tendência se deve a corte de gastos e agrupamento de turmas de EJA em menos escolas, e que as políticas públicas de educação não investem na mobilização ativa para encontrar os adultos sem diploma. “A oferta normalmente não ultrapassa 10% da demanda potencial”, explica ele.
A tendência para o futuro, segundo os especialistas, é que de fato as turmas de alfabetização e ensino fundamental passem a dar mais espaço para o ensino médio. Mas isso não necessariamente significa que a escolarização esteja avançando – eles alertam que o ritmo lento dessa melhora indica que a população mais velha (e, portanto, a menos escolarizada) vai morrendo.
"A ideia de que vai resolver pela mortalidade é um erro imenso", afirma Timothy Ireland. "Temos metas de reduzir em 50% o número de analfabetos funcionais, o que também é muito improvável."
Em 2018, adultos interessados em voltar à escola e cursar o ensino médio só encontram esse serviço em 3,4% das escolas de ensino básico do Brasil.
Mas a demanda por essa modalidade é evidenciada pela evolução do total de matrículas registradas no Censo Escolar.
Entre 2014 e 2018, o número de estudantes no EJA do ensino médio cresceu 5,1%, de 1.367.885 para 1.437.833. Já o número de estudantes no ensino médio regular caiu 7,1% no mesmo período, o que pode indicar, além do abandono escolar, a transferência de adolescentes para o EJA assim que eles completam a idade mínima exigida (15 anos para o fundamental e 18 para o médio).
“Falta no país hoje uma visão de que essa é uma dívida social que o país tem que resolver. Hoje se coloca a discussão numa lógica muito meritocrática, de que a pessoa que não estudou tem culpa e precisa resolver. Se não criar alguma condição para esse sujeito estudar, ele não vai estudar”, afirma Catelli Junior.
A próxima geração de adultos sem diploma
A preocupação com o ensino dos adultos vai além da geração atual, até a demanda futura de quem hoje deveria já estar sendo escolarizado de forma adequada. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad C) de 2017 estimam que cerca de 900 mil adolescentes de 15 a 17 anos sequer estão matriculados na escola. Entre os demais, o Censo divulgado em janeiro mostrou que 28,2% estão cursando uma série inferior à esperada para sua idade, uma situação que aumenta o risco da evasão.
"O aluno de EJA é cada vez mais jovem, não é o que não teve acesso à educação no ano passado. Ele é fruto da escola ruim. É a escola de baixa qualidade que vai produzir o aluno do EJA de amanhã", ressalta Marcelino, da USP.
Por outro lado, os especialistas citam diversos benefícios em investir na oferta de mais turmas de EJA, especialmente em uma sociedade em que, segundo Timothy Ireland, exige domínio da leitura e da escrita mesmo para conseguir um trabalho de pedreiro.
“Quem tem o maior nível de escolaridade rende mais, produz mais. Faz sentido em termos de cidadania, e faz sentido em termos de economia, de produção”, explica Ireland.
Já segundo Marcelino, aumentar a escolarização dos milhões de adultos brasileiros que não pegaram o diploma tem impacto direto na melhora do rendimento escolar dos filhos deles. "Se fala muito que os pais não participam, mas o melhor argumento pro pai participar é poder estudar na escola em que o filho estuda."