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ImprimirMayara Souza tem 20 anos, fala com o tom de voz baixo e prefere não mostrar seu rosto para evitar exposição. Mas seu nome ganhou fama nacional entre dezenas de milhares de estudantes em 29 de janeiro, quando foi o único a aparecer na lista de cotistas raciais aprovados pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu) no curso mais prestigiado do Brasil: medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
"Eu meio que não acreditei. Estava esperando que fosse bem concorrido, fiquei incrédula", contou ela ao G1.
A estudante diz que recebeu muitas mensagens, inclusive de outros estudantes da USP que são cotistas raciais. "Depois que me descobriram eu fiquei um pouco assustada, acharam até fotos minhas."
Matrícula trancada e cursinho noturno
Mayara é a primeira da família a ser aprovada em uma universidade pública. Os pais só concluíram o ensino médio, e um irmão é formado em uma instituição particular, graças a um contrato do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Em 2016, ela já havia sido aprovada em uma universidade federal pelo Sisu, para o curso de biologia. "Durante o ensino médio eu já pensava, mas estava em dúvida entre biologia e medicina", explicou ela, que, no primeiro ano depois do ensino médio, chegou a tentar o curso de medicina em alguns vestibulares. "Mas nem cheguei a passar na primeira fase."
Porém, depois dos primeiros meses de aula como caloura de biologia, ela começou a ter uma ideia melhor da carreira, e viu que sua vocação não estava ali. "Percebi que não era disso que eu gostava, que gostava mais de anatomia humana, então decidi prestar de novo."
Uma conversa com os pais selou seus planos para o ano de 2017: Mayara trancou a matrícula na universidade federal, se matriculou em um cursinho no período noturno, em que a mensalidade é mais barata, e passou os dias estudando.
"Tentava acordar bem cedo e estudar todo o dia. À tarde fazia exercícios, e à noite ia para a aula. Eu fazia as provas antigas. Fiz todas as edições do Enem e uma redação por semana."
Ela diz que foi só no ano passado em que viu alguns dos conteúdos exigidos no vestibular. "Apesar de ter estudado em uma escola técnica estadual, eu tive um ensino médio um tanto quanto defasado", disse Mayara.
"Teve matérias no cursinho que foi a primeira vez que vi na vida. Na escola eu tinha professor faltando, matéria atrasada, então é bem complicado passar num curso desses e numa faculdade dessas."
Depois de um ano de cursinho, além da aprovação na USP, ela também assegurou vagas em medicina na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mas já se decidiu pela USP, e esteve pela primeira vez no campus da USP nas Clínicas, na Zona Oeste de São Paulo, nesta segunda-feira (5), para garantir sua matrícula e conhecer colegas. Lá, ela diz ter sido bem tratada. "É muito bonita a faculdade. Os veteranos foram bem gentis, bem solícitos, me chamaram para atividades."
Adesão inédita ao Sisu
Mayara é a primeira estudante da história aprovada em medicina na FMUSP por uma cota racial, depois que a faculdade aderiu parcialmente ao Sisu e adotou uma política de reserva de vagas. No total, foram 50 vagas destinadas ao Sisu: 10 para a ampla concorrência, 25 para estudantes de escola pública e 15 para quem se formou na rede pública e também se autodeclara preto, pardo ou indígena (PPI).
Porém, além desses dois requisitos, a faculdade ainda determinou uma terceira exigência para que os estudantes que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pudessem disputar as vagas oferecidas no curso pelo Sisu: nota mínima de 700 pontos em todas as provas objetivas do exame, além de 700 na redação.
Levantamento feito pelo G1 mostrou que cinco cursos da USP no Sisu, incluindo o de medicina na FMUSP, ficaram sem notas de corte parciais porque, segundo o próprio Sisu, não havia número suficiente de candidatos para que o cálculo fosse feito.
Ao fim de quatro dias de inscrições, todas as vagas de ampla concorrência foram preenchidas com nota de corte de 819,92. Porém, só oito das 25 vagas para alunos de escola pública acabaram preenchidas; entre as 15 vagas para alunos de escola pública PPI, Mayara foi a única pessoa a cumprir todos os requisitos.
Da tensão à surpresa
Ela explica que, até o primeiro dia de inscrições no Sisu, ainda estava muito nervosa sobre suas chances de aprovação em medicina, principalmente depois de checar a nota no Enem. "Tirei 780 na redação", explicou Mayara, que considerou o tema – os desafios para a educação de surdos no Brasil – complicado. "Não tinha muito conhecimento sobre o assunto, as minhas notas no cursinho eram bem mais altas. Fiquei meio decepcionada", disse.
Porém, sua média final ficou em 756,99, e nenhuma das notas individuais ficou abaixo de 700, o que lhe permitiu se inscrever em medicina na USP logo no início das inscrições. "Fiquei esperando para ver se sua nota ia ficar dentro do corte ou não."
A surpresa só veio no segundo dia de inscrições, quando as primeiras notas de corte parciais foram divulgadas pelo Sisu. Pela falta de candidatos suficientes, ela não conseguia ver a nota mínima até aquele momento para passar na cota de estudantes PPI de escola pública no curso que queria. "Eu meio que não acreditei. Estava esperando que fosse bem concorrido, fiquei incrédula", diz.
Até então, a única informação disponível era que Mayara estava na segunda colocação da concorrência: isso quer dizer que, durante o período de inscrições do Sisu, pelo menos outra pessoa tinha escolhido aquele curso, naquela modalidade de cotas.
Ela não sabia quantas pessoas tinham se inscrito só pela modalidade de escola pública, na qual ela também se encaixa até o último dia de inscrições, porque não havia nota de corte para esses candidatos. A jovem acompanhou o movimento do Sisu todos os dias, mas, na dúvida, decidiu manter sua inscrição dentro da cota racial. Ao fim do processo, tornou-se a única aprovada na modalidade.