Agência Brasil/LD
ImprimirO educador físico Leonardo Peçanha, de 41 anos, entrou no doutorado em saúde coletiva do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz), para pesquisar o papel da atividade física na qualidade vida, na transição de gênero e na autoestima de homens transexuais como ele.
O objetivo de Peçanha é propor um atendimento humanizado, atento às especificidades e complementar à assistência profissional do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS). Como pesquisador trans e negro, porém, ele conta que, muitas vezes, seus pares esperam ouvi-lo apenas sobre outros temas.
"As pessoas esperam que a gente fale de morte, ou só de racismo, ou só de transfobia, ou só de coisas relacionadas à violência, e eu quero falar de outras coisas, quero falar de saúde transmasculina", relata ele, que é pesquisador no grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (Odara/IFRJ/CNPq).
"Acham que vamos falar de determinados temas que são esperados. Não vejo nada demais em quem fala disso, eu também falo, mas não vou falar apenas sobre isso. Podemos falar sobre todos os temas".
As expectativas de pessoas cisgênero, mesmo bem intencionadas, estão entre os desafios que o pesquisador conta que pessoas trans enfrentam ao entrar em espaços como a pós-graduação. Para o educador físico, abrir caminho para outras pessoas trans nesses ambientes demanda disposição para inaugurar discussões que não aconteciam porque eram bloqueadas pela invisibilidade e pela falta de acesso dessas pessoas ao ensino.
"Existe essa questão de destacar que alguém é a primeira pessoa trans a se formar ou a entrar em um curso. Mas eu acredito que, na verdade, isso tem que ser pensado como uma denúncia. Não acho que é positivo. Tem mais a ver com lacunas e invisibilizações e não lugares", afirma.
"A gente precisa ser resistente para estar nesses espaços e produzir. E colocar nossa perspectiva nesses ambientes. Por mais que se tenha embates, também são necessários".
Dia 29 de janeiro é o dia da visibilidade trans. A data escolhida faz referência à mobilização ocorrida em 2004 na Câmara dos Deputados, para a campanha Travesti e Respeito, que levou a um inédito ato de pessoas trans no Congresso Nacional. A pauta central, na época, era justamente a promoção da saúde.
Saúde física e mental
Como professor de educação física, Peçanha argumenta que sua profissão é essencial na assistência a pessoas trans que estão em transição. Além de promover uma relação mais positiva com o próprio corpo, o exercício é um meio para que qualquer pessoa busque mudanças em sua forma física, o que tem um sentido especial para pessoas trans.
"O profissional de educação física é um profissional de saúde que lida com a reconstrução corporal através do movimento, assim como outras áreas, como a fisioterapia", afirma ele.
"O que eu tento propor é um outro olhar sobre a masculinidade e o exercício físico, tanto na saúde, quanto em usar o exercício para reconstruir o corpo. E observar diversos corpos, os que fazem reposição hormonal com testosterona e os que não fazem".
Não foi apenas a vivência como homem trans que despertou o interesse do pesquisador sobre o tema, mas também a atuação na academia Body Move, na Lapa, bairro que historicamente abriga pessoas trans.
Como professor de atividades como a natação, ele conta que, um dia, foi chamado na recepção para dar boas vindas a um novo aluno: outro homem trans.
"Ele estava muito nervoso, porque tinha muito medo de sofrer transfobia. Ele já sabia nadar, tinha sido nadador antes e queria voltar a nadar depois de ter passado por problemas pessoais. Dei aula pra ele, e ele não perdia em nada para nenhum outro homem que estava ali. Essa minha prática me fez perceber a importância de estarmos atentos, não para um atendimento especial, mas para um atendimento que leve em conta nossas especificidades".
Objetificação
O pesquisador defende que, assim como o exercício, a visibilidade trans deve ser para todos os corpos transmaculinos: negros, gordos, pessoas com deficiência, binárias ou não.
"Isso tem melhorado um pouco, mas, quando a gente olha o Instagram, por exemplo, as pessoas que têm mais seguidores são as pessoas brancas e com uma determinada leitura social em detrimento a outras. Não é uma crítica a essas pessoas, porque são todas trans, mas a essa estrutura que visibiliza uns em detrimento de outros. Isso é estrutural".
A rejeição aos corpos trans, na visão dele, anda de mãos dadas com a objetificação sexual de que são vítimas. Ao mesmo tempo em que o país se destaca pela violência contra as pessoas trans, tendo sido classificado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) como o país que mais mata essa população no mundo, o Brasil também é o país que mais busca conteúdos pornográficos com pessoas trans, segundo levantamentos divulgados nos últimos anos por páginas de vídeos explícitos como o Pornhub e o Redtube.
"Existe uma dicotomia de que o mesmo corpo que é desejado é o mais assassinado", avalia ele. "Quando se fala em transmasculinidade, existe a curiosidade. Muitas vezes as pessoas querem se relacionar não por um sentimento, mas por curiosidade de entender o corpo transmasculino, que é lido como um fetiche, principalmente por pessoas cisgêneros".