ConJur/PCS
ImprimirOs sócios e administradores da boate Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e os músicos Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, serão julgados por um júri popular. A decisão, por maioria, foi tomada nesta quarta-feira (22/3) pelos integrantes da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Com a rejeição de Recurso em Sentido Estrito, movido pela defesa dos réus, fica mantida a Pronúncia Criminal determinada pelo juiz Ulysses Louzada, que cuida deste processo na 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria.
Os quatro serão julgados pelos crimes de homicídio duplamente qualificado (242 vezes consumado, pelo número de mortos; e 636 vezes tentado, número de feridos) pelo Conselho de Sentença, formado por sete jurados.
O julgamento durou quase quatro horas e reuniu dezenas de familiares de vítimas, advogados das partes, profissionais e estudantes de Direito e representantes da imprensa. Os réus Marcelo e Luciano também acompanharam a sessão.
O julgamento do recurso
Os réus ainda recorreram na primeira instância, alegando omissão, contradição e ambiguidade na decisão do juiz Louzada. O pedido de reforma da sentença foi negado pelo julgador singular, em agosto de 2016. As defesas recorreram ao Tribunal de Justiça. O recurso foi protocolado no dia 30 de novembro de 2016.
Na 1ª Câmara Criminal, a procuradora de justiça Irene Soares Quadros, representando o MP, ressaltou o dolo eventual ou indireto em todas as condutas dos denunciados. "Eles aceitaram o risco de produzir aquele resultado danoso [a tragédia]". Para ela, as obras de adequação na boate não tiveram o objetivo de preservar a vida ou a segurança dos frequentadores, a maioria jovens universitários, mas maximizar o lucro. Tanto que muitos morreram porque foram impedidos de deixar o local, pois não haviam pago a conta.
Durante o julgamento do recurso, o desembargador-relator Manuel José Martinez Lucas rebateu todos os argumentos apresentados pela defesa dos administradores da boate, representados pelo advogado Jáder Marques.
O relator reconheceu que tanto Hoffmann quanto Spohr tinha poder de gestão na boate, mas não viu dolo eventual em suas condutas, apenas culpa, negligência e imprudência. ‘‘Todas as condutas atribuídas aos réus acusados na pronúncia são culposas, pois as autoridades permitiram que a boate funcionasse normalmente’’, manifestou-se.
Voto divergente
Manuel Lucas, entretanto, ficou em minoria na votação. Os desembargadores Sylvio Baptista Neto e Jayme Weingartner Neto entenderam de modo diferente. Para este último, a tragédia só ocorreu porque a conduta dos pronunciados foi determinante para os danos — de "dimensão planetária" e com grande "repercussão midiática". A grande questão discutida neste julgamento, lembrou Weingartner, é a assunção de riscos, citando a doutrina do jurista alemão Claus Roxin a respeito do dolo.
"A denúncia descreveu que, dado início ao ato de matar as vítimas (desencadeado o fogo e a emissão de gases tóxicos), as mortes não se consumaram por circunstâncias alheias aos atos voluntários praticados pelos réus. A imputação baseia-se tanto na prova oral (vítimas e médicos), na reconstrução da dinâmica do evento, quanto nos autos de exame de corpo de delito e outros documentos, dando conta dos malefícios pela inalação da fumaça e também de queimaduras sofridas’’, disse o magistrado.
Segundo o desembargador, o risco continuado assumido pelos réus — deixando de seguir a melhor técnica na reforma da boate e ignorando os perigos de realizar um show pirotécnico num ambiente fechado e revestido de material inflamável — reforça a ideia de "dolo eventual". E é irrelevante se escudar no argumento de que a boate permaneceu aberta porque tinha licença de operação, concedida pelas autoridades responsáveis pela fiscalização.
Segundo o desembargador, a licença perde a sua validade quando for descumprido algum procedimento. Por exemplo: uso de fogo pirotécnico em ambiente coberto por material de espuma, altamente inflamável. Assim, os danos eram previsíveis. Apesar de apontar a relação causal entre a conduta dos pronunciados e a materialidade dos fatos, com dolo, os membros do colegiado afastaram as qualificadores atribuídas pelo Ministério Público — motivo torpe e meio cruel.
A tragédia
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, sediava uma festa universitária, com show da banda Gurizada Fandangueira. Durante a apresentação, o grupo utilizou um tipo de fogo de artifício (conhecido como "chuva de prata") que atingiu o teto da danceteria, dando início ao incêndio que matou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas.
De acordo com a denúncia do Ministério Público, as centelhas entraram em contato com a espuma altamente inflamável que revestia parcialmente paredes e o teto do estabelecimento, principalmente junto ao palco, desencadeando o fogo e a emissão de gases tóxicos.
O processo principal tem 96 volumes e mais de 20 mil páginas. O feito tramita na 1° Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, cujo titular é o juiz Ulysses Fonseca Louzada. Ao longo desses quatro anos, o magistrado colheu mais de 200 depoimentos, entre vítimas (114), testemunhas (68), peritos (18) e réus (4).