Matheus Pichonelli
"Pós-verdade", eleita a palavra do ano em 2016 pelo Dicionário Oxford, virou verbete listado no site oficial da Academia Brasileira de Letras.
Não se trata de um neologismo que simplesmente chegou para substituir a boa e velha "mentira". É um pouco mais complexo que isso.
Pela definição da ABL, trata-se de uma "informação ou asserção que distorce deliberadamente a verdade", ou algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais.
De 2016 pra cá, é verdade, o termo caiu em desuso. Foi esquecido à medida que o verbete anglófono "fake news" se popularizou em meio à profusão de lorotas criadas por profissionais e espalhadas pelos ventos das redes sociais.
Mas nem por isso a pós-verdade deixou de pautar a opinião pública e o comportamento social. Pelo contrário: nunca operou com tanta força.
Em períodos eleitorais, o fenômeno é facilmente observado em qualquer residência ou mesa de bar onde se reúnam duas ou mais pessoas em nome de alguma divindade política.
Como se saíssem de um estado de hibernação a cada quatro anos, os seguidores surgem das sombras para reverter votos e converter os infiéis. A missão é quebrar a resistência ao papo furado de que seu candidato reúne os atributos para liderar a cruzada contra todo os tipos de inimigos, muitos dos quais só habitam em suas cabeças, modeladas em algum regime pré-queda do Muro de Berlim, em 1989.
Sabe-se que a liga do eleitor com seu candidato é movida muitas vezes pelo componente emocional, contra os quais dados, notícias e curiosidades não fazem arranhão. O mito, diria Fernando Pessoa, é o nada que é tudo.
Daí que nessa época do ano é comum ver todo tipo de pregação. Aluno quer ensinar professor a dar aula. Militante alimentado por WhatsApp quer reescrever as páginas de jornais. Pastores transformam púlpito em palanque. E até cantores sertanejos deixam de lado o berrante para pregar em louvor de seu candidato — geralmente em palcos pagos com dinheiro público.
Se havia algum limite, ele parece ter sido cruzado depois que clientes bolsonaristas da XP Investimentos, parte deles ligada ao agronegócio, espernearam em razão das pesquisas do Instituto Ipespe encomendadas pela corretora na semana passada.
O motivo, segundo noticiou a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, é que eles estavam descontentes com os números, apurados pelo instituto, que apontavam favoritismo do ex-presidente Lula (PT) na corrida presidencial. Esses números solapavam a base de suas crenças, aceitas como verdade, e difundidas em detrimento de fatos apurados.
Esses fatos apurados mostravam que Lula marcava 45% das intenções de voto contra 34% de Jair Bolsonaro. Mais: a mesma pesquisa dizia que 35% dos eleitores consideravam a honestidade um atributo do petista — índice superior ao do ex-capitão, cuja retidão é reconhecida por 30%.
Foi o estopim para a revolta.
Na narrativa bolsonarista, o capitão pode até pecar pela falta de inteligência, de capacidade de liderar um país em crise ou pela ausência de humanidade e empatia com as vítimas das tragédias que causa ou acentua, mas pelo menos é honesto por dizer o que pensa.
No imaginário da turma, rachadinha, uso indevido de auxílio-moradia, suspeitas no FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), na negociação de vacinas e compras de caminhões, ônibus, laptops e carteiras escolares para a rede pública são só intriga de quem perdeu a mamata e agora quer vingança.
Com raiva da mensagem apontada na pesquisa, os clientes da XP decidiram matar o mensageiro.
A divulgação do último levantamento, já registrado no TSE, foi cancelada. E o que antes era boletim semanal passará a ser mensal com remodelação. Quem sabe assim os números da realidade se aproximem daquela onde pensam viver os donos do dinheiro.
A pressão começou no grupo de WhatsApp usado para representantes dos escritórios de investimento se comunicarem com o departamento de marketing da corretora, de acordo com a coluna Radar Econômico, da revista Veja.
Uma cliente chegou a pedir aos líderes da área para "rever" pesquisas do tipo porque elas "não agregavam nada aqui na ponta".
Faltava só alguém lançar um meme com o rosto de Donald Trump exigindo a paralisação das apurações.
Nas redes sociais, o mal estar se converteu em ataques explícitos protagonizados por Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e companhia.
Até ministros chegaram a telefonar para a XP para reclamar dos resultados.
Mas a situação ficou séria mesmo quando os clientes revoltados ameaçaram fechar contas e retirar seus investimentos da XP.
Uma coisa é perder a razão. Outra é perder dinheiro. Não é difícil descobrir de que lado a corretora de valores ficou.
A trapalhada acontece no momento em que políticos adeptos da pós-verdade se organizam para inviabilizar o trabalho dos institutos de pesquisas. Um dos muitos projetos de jerico na praça prevê a obrigatoriedade de as empresas informarem, a cada nova pesquisa, uma espécie de "taxa de acerto" nas últimas eleições.
Pesquisas, vale lembrar, captam momento, e acontece muita coisa entre o céu e a terra do primeiro levantamento até a véspera da votação.
Bolsonaro e seus soldados, que há anos distorcem deliberadamente a verdade e juram não acreditar em jornais ou institutos de opinião, querem agora reescrever o dicionário: pesquisa é tudo aquilo que confirma a verdade que habita em minha cabeça, talkei?
Difícil saber quem agiu pior no episódio: se os terraplanistas de pesquisa eleitoral ou a empresa que cedeu à pressão.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EdiçãoMS