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Brasil
19/08/2017 07:33:00
A política afastou os homens de bem
É preciso erradicar da política o abuso do poder econômico e o uso da corrupção como forma de governar

Época/PCS

No início deste agosto, novamente a Câmara dos Deputados confirmou para a população quanto nosso sistema político está dissociado do interesse público e da real solução dos problemas brasileiros. A síntese desse momento deprimente foi uma sessão em que parlamentares venderam seus votos em plenário, destruíram pixulecos com os dentes, pediram nudes pela internet e, por sua maioria, mantiveram no poder um presidente denunciado por corrupção no cargo.

Mas quem são esses deputados? Muitas vezes ouço análises simplistas dizendo que eles são apenas o reflexo do povo brasileiro. Representam o nosso povo e, portanto, agem como ele. Esse raciocínio é divulgado por interessados em nos fazer absolver a corrupção, a falta de interesse público, os conchavos e até mesmo a imoralidade de nossa elite política, afirmando que somos todos culpados.

Muitos dos que seguem essa forma de pensar maldizem a esperteza da população, difamam-na afirmando que ela quer “levar vantagem em tudo”, apontam o brasileiro como um povo sem caráter. E esse mesmo brasileiro repete ingenuamente nas redes sociais esse mantra, colocando essa pecha no “outro”, naqueles que não sabem votar, naqueles que não se manifestam contra esse estado de coisas, esquecendo que não há outros, mas apenas nós mesmos, passageiros do mesmo barco. Passageiros, mas nunca comandantes.

Creio firmemente que essa relação de causa – dissolução moral de nosso povo – e efeito – dissolução moral de nossas elites – está incorreta. Confundem-se causas e efeitos, como se os vícios do pai pudessem ser imputados ao filho. Além disso, nossa história é muito mais pródiga em mostrar a “grande” esperteza de nossa elite econômica e política, esta, sim, sempre levando vantagem em todas as circunstâncias, que a “pequena” esperteza do povo.

A história e a literatura mundiais estão cheias de exemplos de pobres que tentam escapar da miséria por meio de pequenas espertezas, contra os nobres, os bem-nascidos, os padres, os lordes, os burgueses etc., sem nunca realmente conseguirem mais que, ao final, sobreviver. Vemos isso nos servos de Shakespeare, nos vilões de Boccaccio, num João Grilo de Suassuna e nas figuras populares como Pedro Malasartes do folclore português. Assim, o que chamamos de esperteza é historicamente apenas a forma de sobreviver à exclusão a que eram submetidos. Em um mundo onde somente lhes destinava sobras, a única virtude possível para sobreviver era ser esperto, pois nem mesmo as sobras eram para todos.

Isso é especialmente verdadeiro no Brasil. O Brasil colonial é a transposição de um sistema de privilégios em favor dos nobres em detrimento do povo, em favor dos portugueses em detrimento dos brasileiros, em favor dos abastados em detrimento dos sem-posses. E esse sistema de exclusão sobreviveu às mudanças de regime político e ao próprio tempo, mudando as classes sociais que se tornavam privilegiadas, mas mantendo sempre a maioria fora das benesses do poder político e econômico.

E esse sistema sempre teve ainda uma característica ainda mais perversa. Tão logo pessoas excluídas conseguiam por alguma circunstância excepcional ascender para as elites, passavam a agir exatamente como elas. Assumiam como seu o direito à perpetuação do sistema, como se, por terem sofrido sob ele, fossem agora titulares do direito de usufruir os privilégios. É como se o filho, pelo exemplo dos vícios do pai, se tornasse ele ao crescer.

Esse fenômeno está hoje exacerbado pelo novo paradigma do sucesso em nossa sociedade. Faltam-nos exemplos do bom, do moral ou do correto, e sobram histórias de sucesso fácil ou, pior, histórias que justificam até o crime para vencer na vida. Isso vem ainda exacerbado em uma cultura que valoriza a celebridade a qualquer preço, e não o mérito, o trabalho árduo e o esforço próprio. Como podemos ser diferentes quando a experiência mostra que vale a pena transgredir as regras se você for poderoso? Reforça-se assim a expectativa de que a lei somente vale para quem não tem condições financeiras de afastá-la. Pode-se roubar a República, mas não um xampu.

Mas agora as investigações da Operação Lava Jato colocaram todos nus. O que era antes intuído, hoje, está exposto. As negociatas em pleno palácio oficial, o balcão de negócios no plenário da Câmara dos Deputados, a troca de favores, cargos públicos e verbas por apoio para afastar uma denúncia de corrupção, não há mais nada “por debaixo do pano”. Levantamos o véu que cobria nossa política e vemos não uma vestal, mas um ser amorfo, apodrecido por seus vícios e conduta degenerada.

Salvam-se poucos dessa triste história. Nenhum nome na política que nos inspire confiança, liderança ética e conduta exemplar nos vem à mente quando olhamos o atual estado das coisas. Se em determinados momentos da história acreditávamos, certo ou errado, em um Ulysses Guimarães, em um Tancredo Neves, em um Teotônio Vilela, ou mesmo em um Leonel Brizola, hoje nem sombras de estadistas podemos vislumbrar.

Isso aconteceu porque a política afastou os homens de bem. Os partidos tornaram-se máquinas dominadas por interessados em poder, e não em bem governar. As eleições tornaram-se espetáculos em que o marketing e a mentira têm o papel principal, e o dono do dinheiro determina quem será eleito ou não. Não restou espaço para discutir qualquer interesse público, mas apenas interesses particulares de poderosos, que, como hienas, disputam a carcaça de um moribundo país.

O que resta a fazer é não deixar que nos usem como culpados. É preciso exemplos de homens públicos, verdadeiros republicanos e democratas, tolerantes com as divergências, mas não com o crime, a venalidade e a falta de ética. E para isso é preciso erradicar da prática política o abuso do poder econômico e o uso da corrupção como forma de governar. Precisamos de uma reforma na política que permita novos nomes e novas ideias. Sempre é tempo para mudar. É preciso quebrar esse círculo vicioso e permitir que uma política limpa e ética floresça. Assim nossa população terá os exemplos de que precisa. Essa é a esperança, e ela ainda não morreu, apesar deste infeliz início de agosto.