G1/LD
O acesso ao serviço de aborto legal na cidade de São Paulo, a primeira do país a ter um programa voltado para o atendimento dos casos previstos em lei, ainda é dificultado pelo desconhecimento da legislação, das normas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, e do preconceito em relação a tal direito.
A reportagem do G1 testou os serviços indicados no site da Prefeitura e encontrou dificuldade em obter dados corretos e completos na maioria dos canais. Pelo telefone, e-mail ou presencialmente, quatro dos cinco hospitais referendados passaram informações erradas, como prazo máximo e motivações para realizar o procedimento.
Principais falhas:
-Maioria dos serviços afirma que o aborto legal só é permitido em casos de gravidez decorrente de estupro - omite as outras duas situações em que o serviço também é legalizado -Desconhecimento da norma técnica do Ministério da Saúde
Pelo Código Penal Brasileiro, de 1940, o procedimento é permitido em caso de risco à vida da gestante e gravidez decorrente de estupro. Em 2012, o aborto de feto sem cérebro (anencefalia) também deixou de ser considerado crime. Até então, só era realizado após autorização da Justiça.
No Brasil, o aborto é permitido em três casos:
-Gravidez decorrente de um estupro -Risco à vida da gestante -Anencefalia do feto
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, desde 1989, quando o primeiro serviço foi implantado, durante a gestão da então prefeita Luiza Erundina, foram realizados 452 abortos legais.
O Ministério Público estabelece, em norma técnica de atenção humanizada ao abortamento, que o procedimento pode ser feito até a 22ª semana de gravidez ou feto pesando até 500 gramas. A limitação de período está prevista apenas para casos de gravidez decorrente de estupro.
Em entrevista ao G1 por telefone, Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador da área técnica de saúde da mulher da Secretaria Municipal da Saúde, reconhece os problemas - embora os considere isolados - e afirma que o tema exige investimento constante em capacitação e orientação dos profissionais.
"Existem deficiências pontuais? Existem. Acho que precisa realizar um processo de educação permanente. É diferente de um serviço que tenha esse tipo de rotina consolidada há muito tempo. Esse processo de aprimoramento das informações eu acho que é algo que a gente tem que fazer constantemente", diz.
O prazo máximo para a interrupção da gravidez foi um dos erros mais frequentes. O dado equivocado é repassado até por um médico da coordenação da Atenção Básica da Saúde da Mulher, através do canal eletrônico disponibilizado pela Secretaria Municipal de Saúde para obter mais informações: saudedamulher@prefeitura.sp.gov.br.
A resposta contraria a norma técnica, omite as especificidades da lei - sugere que nos três casos previstos o prazo máximo para realizar o procedimento seja de até 20 semanas -, e ainda contém informações sobre o risco de punição à mulher.
“A legislação brasileira permite a interrupção da gravidez em caso de estupro, risco de vida materna ou em gestante portadora de feto com anencefalia (ausência de cérebro). O processo deverá ser realizado até 20 semanas de gravidez. Não é necessária nenhuma comprovação nos casos de estupro, pois a gestante assina um termo de responsabilidade sobre a informação prestada, que serve como documento oficial. No caso de falsidade de informação, a gestante responde a processo criminal, podendo ser presa", diz o e-mail.
Aguemi não ignora os problemas do texto, mas garante que ele não traduz as orientações da área.
"A gente não orienta isso de um modo geral. Se você dar visibilidade para essa resposta, dá a impressão que o município de São Paulo tem essa rotina de forma regular. Não. A gente não tem essa postura de querer apenar essa mulher. Existe uma incorreção nessa resposta. Poderia ser respondido de uma forma, nesse aspecto, mais adequada", argumenta.
Rede referendada
Em tese, todo hospital público com serviço de obstetrícia e maternidade tem condições de oferecer suporte ao abortamento legal. Entretanto, a Prefeitura indica, em seu site, uma rede referendada de cinco unidades, uma em cada região da cidade.
Os serviços realizam o primeiro atendimento, colhem exames, fornecem medicações (pílula do dia seguinte e profilaxia de DST/Aids), fazem seguimento e realizam aborto previsto por lei nos casos indicados.
REGIÃO SUL • H.M. DR. Fernando Mauro Pires Da Rocha - Campo Limpo Endereço: Estrada de Itapecerica, 1661 - Campo Limpo Fone: 3394-7503 / 7504 / 7730 – serviço social (localizado no Pronto-Socorro)
REGIÃO OESTE • H.M. Prof. Mario Degni - Hospital Jardim Sarah Endereço: Rua Lucas De Leyde, 257 - V. Antonio Fone: 3394-9394 (ramais 9395/ 9396/ 9397) – serviço social (localizado próximo à recepção)
REGIÃO SUDESTE • H.M. Dr. Carmino Caricchio - Tatuapé Endereço: Av. Celso Garcia, 4815 - Tatuapé Fone: 33947149 ou 33946980
REGIÃO LESTE Hospital Municipal Tide Setúbal- São Miguel Paulista Endereço: Rua Dr. José Guilherme Eiras, 1123 Fone: (11) 3394-8840 – serviço social (localizado no primeiro andar)
REGIÃO NORTE • H.M.M. Escola Dr. Mario De Moraes Altenfelder Silva Endereço: Av. Deputado Emilio Carlos, 3.100 – V. Nova Cachoeirinha Fone: 3986-1151 – serviço social (localizado no ambulatório – sala 12) (11) 3986-1128 / 3986-1159 – Pronto-Socorro
No Hospital Professor Mario Degni, no Jardim Sarah, na Zona Oeste, o funcionário do serviço social afirma que o aborto legal é realizado somente em caso de gravidez decorrente de estupro e orienta apresentar boletim de ocorrência – o que não está previsto na lei tampouco é exigido pela norma técnica.
No Hospital Municipal Tide Setúbal, na Zona Leste, a funcionária do serviço social chega a confundir Ministério da Saúde com Organização Mundial de Saúde (OMS) e sugere que o prazo para a interrupção da gravidez nos casos de violência sexual seja volátil.
“A Organização Mundial de Saúde teve várias alterações. Era 12, 17, 20 (semanas de gestação). Teria que ver com o doutor qual é que está prevalecendo”, explica.
Já no Hospital Municipal Escola Doutor Mario de Moraes Altenfelder Silva, na Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte, o serviço social informa que a gestação só pode ser interrompida em casos de gravidez decorrente de estupro e anencefalia do feto. Risco à vida da mulher não é citado.
A funcionária também revela que o procedimento é realizado até a 12° semana de gravidez. “Parece que no Pérola Byington [hospital estadual] eles conseguem fazer até 20, 22 semanas. Aqui a gente faz até 12”, diz.
No Hospital Municipal do Tatuapé, na Zona Leste, o serviço social informa que a lei só prevê o direito ao aborto em casos de violência sexual. A funcionária também revela que a interrupção não é feita quando a gestação supera 12 semanas. “Senão já corre risco”.
O coordenador da área de saúde da mulher da gestão municipal afirma que nem todos os profissionais do serviço social atuam diretamente no programa - por isso a falta de conhecimento específico - e que a aceitação das normas e protocolos ainda encontra entraves em aspectos morais.
“A gente sabe que nos programas de aborto legal não é homogêneo a adesão das equipes. Existem profissionais que acabam emitido os seus valores. Mas além disso, a gente não pode dizer que a capacitação, a qualificação, é homogênea dentre todos os profissionais que atuam no serviço. Então, mesmo dentro do serviço social tem profissionais que nem sempre atuam de forma específica no programa de aborto legal. Eles fazem várias ações de saúde. É um processo constante de a gente ter que atualizar, fortalecer os bons protocolos. É uma educação permanente que a gente tem que estar realizando, para que passe a informação mais adequada", revela.
Dificuldades
O Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul, foi o único da rede referenciada a passar as informações corretas. Entretanto, a reportagem demorou mais de 30 minutos para conseguir localizar o serviço social responsável pelo atendimento, conforme orientação no site da Prefeitura.
Uma psicóloga que faz parte da equipe multidisciplinar que presta atendimento às pacientes demonstrou conhecimento das normas técnicas, mas confirmou as dificuldades no acesso. “Eu fiquei sabendo hoje de um médico que falou para uma paciente de que ela precisava de um laudo judicial”.
Ela ainda revela aumento nos casos de violência contra à mulher e crescimento no número de abortos legais realizados pela unidade. “Está nas nossas metas melhorar isso. Mas a gente é um hospital público cheio de dificuldades e é bem complicado mesmo. A gente dobrou o número de casos do último ano. De violência e aborto legal. Está muito estressante para a equipe. Estamos trabalhando incessantemente.”
A profissional alega que a Prefeitura erra ao indicar que as mulheres procurem pelo serviço social para obter informações e sanar dúvidas. “Na verdade, não é o serviço social que faz isso. Tem um serviço de Atendimento ao Usuário, o SAU. O serviço social é para os casos internos.”
Investigação
Há quase dois anos o Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo investiga irregularidades nos serviços de abortamento legal na cidade de São Paulo.
“Nós instauramos o procedimento de fiscalização dos serviços de abortamento previsto em lei em 2015 após notícias de que mulheres teriam comparecido a alguns desses serviços e teriam sido encaminhadas para outros serviços ou recebido recusa de atendimento”, afirma Ana Rita Prata, defensora pública e coordenadora do NUDEM.
Segundo a defensora, as recusas teriam sido baseadas em objeções de consciência, gestação fora do prazo permitido e até encaminhamentos sem nenhuma justificativa. Na época do início das investigações, o núcleo recebeu 21 denúncias.
A Defensoria oficiou todos os serviços questionando o atendimento e solicitando informações sobre o números dos procedimentos realizados nos últimos anos em cada hospital.
“Resolvemos buscar a Prefeitura de São Paulo através da autarquia municipal, que é o órgão que administra esses equipamentos de saúde, e a coordenadoria da área de Saúde da Mulher da Secretaria municipal de saúde”, explica Ana Rita Prata.
Com a mudança de gestão, o diálogo teve de ser recomeçado. Em julho deste ano, a defensoria se reuniu com a direção da Autarquia Hospitalar Municipal e, posteriormente, com a chefia dos hospitais.
Na ocasião, foi recomendado o cumprimento das normas técnicas, e a atualização do site da Prefeitura, que ainda indicava o Hospital Saboya, na Zona Sul, como referendado. O serviço foi desativado pela gestão municipal em julho. A primeira atualização foi feita em setembro. A última, no dia 8 de dezembro.
Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador da área técnica de saúde da mulher da Secretaria Municipal da Saúde, disse que participou das reuniões com a Defensoria Pública, e que as orientações foram repassadas aos serviços, mas que não basta notificar, é preciso tempo e investimento para obter mudanças.
“Nessa reunião, a gente reforçou a importância para que os serviços cumpram a lei, se organizem para cumprir a lei, que é de até 22 semanas. Como área técnica, a gente reforça as boas práticas. Agora, a gente sabe que entre você orientar um serviço e a maioria dos profissionais incorporar é questão de, além de fazer reunião, estar realizando um processo de educação permanente."