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L. foi preso em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, a caminho de um churrasco com sete amigos. Levava 25g de maconha dentro de uma sacola. O grupo alegou que carregava a droga para uso próprio. Foram presos em flagrante por tráfico de entorpecentes. "Injustiça, porque só usava maconha. Não tinha contato com o crime. E se ficasse mais dias por lá [preso], não dá para saber o que ia acontecer. Muita gente ruim", disse.
M. foi presa em 2012 com 1 grama de maconha. Foi condenada por tráfico a uma pena de 6 anos e nove meses de prisão e pagamento de 680 dias-multa. A decisão foi mantida em segunda instância. Em março, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou seu habeas corpus. Ela só foi solta em abril, após mais de três anos de cárcere, por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O G1 listou alguns desses casos (veja na tabela) que refletem os milhares de processos semelhantes que têm chegado aos tribunais desde a entrada em vigor da Lei de Drogas, em 2006.
A aplicação falha da lei é apontada como a causa da superlotação dos presídios na última década. Presos por tráfico de drogas já superam os de todos outros crimes no país, segundo dados do Ministério da Justiça.
Um desses processos está no STF e deve ser julgado ainda este ano. O caso é o de um presidiário de Diadema (SP) condenado como usuário de maconha, que quer derrubar essa decisão.
Em razão da grande quantidade de processos parecidos, o STF reconheceu a repercussão geral. A decisão adotada deverá ser a mesma em todos os demais. Se aceito o recurso, na prática, o porte de drogas para consumo próprio deixa de ser crime no Brasil.
Crescimento vertiginoso Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse número passou para 138.366, um aumento de 339%. Nesse mesmo período, só um outro crime aumentou mais dentro das cadeias: tráfico internacional de entorpecentes (446,3%).
Nesta terça (23), o Ministério da Justiça divulgou dados de 2014 sobre o sistema carcerário brasileiro, mas nem todos os estados informaram a estatística sobre os crimes cometidos. O levantamento mostra, no entanto, que proporção dos presos por tráfico se manteve também no ano passado. Eram 25% do total entre os homens e 63% entre as mulheres.
Só em São Paulo, posse e tráfico de drogas motivaram 25,27% das prisões de incluídos no sistema prisional entre 15 de abril e 14 de maio deste ano. Foram 837 novos presos de um total de 3.311 no período de um mês, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Outros 10,72% (355 presos) entraram por outros crimes praticados em função do vício em substância tóxica.
Usuário x traficante
Pela lei, para definir se o preso é um usuário de drogas ou um traficante, o juiz levará em conta a quantidade apreendida, o local, condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, além da existência ou não de antecedentes. Essa mesma interpretação é feita pelo policial, quando prende, e pelo promotor, quando denuncia.
O porte para consumo próprio é crime, mas as penas são advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa. O sujeito é detido, assina um termo circunstanciado, e é liberado para responder em liberdade.
A pena para o tráfico vai de 5 a 15 anos. Na lei anterior, ia de 3 a 15 anos. O sujeito é preso em flagrante, que pode ser convertido em uma prisão preventiva (sem prazo). E o juiz não podia conceder liberdade provisória até 2012, quando o STF derrubou essa regra.
A mudança na lei em 2006 tinha o objetivo de abrandar o tratamento penal dado ao usuário, mas, na prática, acabou havendo um efeito reverso, e perverso, segundo especialistas.
Processos recebidos às centenas pelas Defensorias Públicas, o órgão de defesa de quem não tem condições para pagar por um advogado, mostram casos em que apreensões de pouca quantidade de drogas se reverteram em penas de mais de 5 anos.
Em muitos casos, o preso alegou ser usuário, mas foi enquadrado como traficante sem provas. Aquele que vende para sustentar o vício, por sua vez, se vê diante de uma pena mínima de 5 anos que, se é diminuída, chega no patamar de 1 ano e 8 meses em regime de reclusão.
“O resultado prático é que pessoas pobres são presas como traficantes e os ricos acabam sendo classificados como usuários. Um sistema assim não é bom para ninguém”, afirmou ao G1 o ex-secretário nacional de Justiça Pedro Abramovay, que foi demitido do governo Dilma Rousseff após defender publicamente a extinção de penas para pequenos traficantes.
Para ele, “as prisões por drogas hoje são uma fonte perversa de criminalização da pobreza”. “A política criminal brasileira nos últimos anos reforçou a lógica do ‘pega ladrão’. A grande maioria dos presos está lá porque foi preso em flagrante, sem investigação prévia”, complementa.
Maria Tereza Uille Gomes, que presidiu o Conselho Nacional de Secretários de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej), aponta uma “lacuna” a ser preenchida na lei. “Falta um critério de regulamentação, requisitos objetivos. Não tem como saber se tal quantidade de drogas é muito ou é pouco. A polícia não tem um critério de quem é usuário, quem é traficante”, avalia.
Segundo ela, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) poderia fazer essa regulamentação. “A prisão acaba funcionando como um substitutivo da ausência de políticas públicas de internação, facilitando a inserção em organizações criminosas. Essas pessoas que não têm periculosidade se misturam com latrocidas, homicidas, e, quando saem, acabam se transformando em traficantes”, afirma. saiba mais
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A droga nos presídios A grande proporção de presos por tráfico se reflete na presença de drogas dentro das penitenciárias. No Maranhão, onde está a Penitenciária de Pedrinhas, palco de uma guerra interna de facções de traficantes que culminou em dezenas de decapitações, o número de presos por tráfico mais que dobrou em seis anos. O novo panorama dentro das prisões é apontado como uma das causas de aumento das rebeliões, o que fez com que alguns estados adotassem medidas de controle interno para contê-las.
Para Eugênio Coutinho Ricas, secretário de Justiça do Espírito Santo, um dos poucos estados que conseguiu reverter um histórico de guerra entre facções em seus presídios, o controle passa por investimento em segurança e ressocialização dos presos. “Ele precisa ter um trabalho, condições de estudar, para que saia um ser humano melhor, que não vai voltar ao tráfico e outro tipo de crime”, diz.
“Às vezes, um pequeno tráfico, dependendo da legislação que o país tivesse, poderia ser considerado como uso. Esse é o crime que aparece com maior número de presos aqui no estado”, complementa.
Em Fortaleza, a população carcerária do presídio feminino dobrou devido ao aumento vertiginoso de presas por tráfico, em proporção que chega ao triplo da dos homens. Atualmente, são 719 presas para 374 vagas no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa. "Era um presídio modelo, dava para trabalhar a ressocialização. Por conta dessa questão do tráfico, está superlotado", relata a promotora de Justiça Camila Gomes Barbosa, titular da 3ª Promotoria de Execuções Penais e presidente do Conselho Penitenciário do Ceará.
Epidemia de flagrantes
Na capital paulista, a Defensoria Pública do Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária), que concentra os flagrantes da cidade, recebe diariamente familiares dos presos em busca de informações e auxílio sobre essas prisões.
T. é irmã de um jovem de 18 anos preso na terça-feira (16) por tráfico em Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade. "Ligaram falando que ele tinha sido enquadrado. Não falaram quanto de droga. Ele é usuário de maconha. Eu já vi, já briguei", disse ela no Fórum Criminal da Barra Funda, onde aguardava notícias do irmão. "Ele chorou, pediu desculpas para mim e para minha mãe", relata.
O irmão teve a prisão em flagrante convertida em preventiva em razão da gravidade do crime de tráfico. "Ele andava com um pessoal, usuário. Mas com traficante ele nunca andou não. É que ali no bairro, tem muito. Mas a gente sabe quem são", diz a irmã.
Ao lado, M., 22, tem uma história parecida. O marido foi preso em 2013 por tráfico, junto com seu irmão, em Sapopemba, Zona Leste. "Eles estavam sentados, comendo. A polícia chegou, encontrou cocaína e maconha. Já enquadraram por tráfico. O policial falou que meu marido era patrão [traficante]. Acho que é porque ele era alemão, tinha olho azul. Ele ficou seis meses esperando a audiência", conta.
Segundo M., o marido trabalhava em uma obra do monotrilho. Começaram a namorar quando ela tinha 15. Aos 16, engravidou. O marido foi condenado. Ficou preso 1 ano e 8 meses, sem direito a progressão de regime. "Até venceu a pena", afirma.
M. também foi presa no último dia 28 e responde em liberdade pelo crime de suborno. "Tinha um amigo nosso metido com tráfico, que falou que precisava de um dinheiro urgente. Mas a gente não sabia que era para tráfico. Levantamos e fomos ajudar. Quando chegamos, a polícia prendeu", diz ela, que ficou no CDP de Franco da Rocha. "Meu Deus. Aquilo mais parece uma cracolândia", diz ela, comparando o presídio feminino à região onde se consome crack na capital paulista.
Pouca droga, muita pena
Um estudo da Defensoria Pública de São Paulo tentou mostrar um retrato de como se realizam as prisões de traficantes no estado. “Os dados são de 2010, mas acredito que estejam bem atuais, porque a política é a mesma”, explica a autora Gorete Marques, do Núcleo de Estudos de Violência da USP.
O que o STF pode decidir
Hoje o usuário é um criminoso, mesmo não estando sujeito à prisão. Essa conduta está no artigo 28 da Lei de Drogas. Se o STF julgar esse artigo inconstitucional, o porte de drogas para uso próprio deixa de ser crime. O relator é o ministro Gilmar Mendes.
O caso julgado é o de um presidiário que cumpria penas que somavam mais de dez anos de prisão no CDP de Diadema e foi solto em janeiro deste ano. A polícia encontrou 3 gramas de maconha em um marmitex em sua cela. O preso foi condenado como usuário de drogas à prestação de serviços à comunidade, mas sua defesa não se conformou. O recurso defende que ninguém pode ser punido por ser usuário, pois o que se faz na vida privada não afeta terceiros.
“A maioria dos casos é assim. Quantidade muito baixa, sempre em locais pobres, pessoas jovens, geralmente primárias. Daria para fixar a pena de 1 ano a 8 meses. A gente está enxugando gelo”, diz o defensor público Leandro de Castro Gomes, que apresentou o recurso extraordinário do preso ao STF.
Os ministros do Supremo devem responder à seguinte questão: o usuário de drogas afeta terceiros com sua conduta? Se sim, deve ser punido, em nome da saúde pública. É o argumento dos que acreditam que o usuário alimenta o tráfico. Se não, sua vida privada não deve ser invadida pelo estado, portanto, usar drogas não é crime.
Segundo o defensor, uma decisão do STF não significa a liberação das drogas. "Se o STF entender que é inconstitucional, o tráfico continua sendo crime", explica. "O que pode acontecer são alguns efeitos reflexos. A rigor, uma pessoa poderia fazer um pequeno cultivo para o seu próprio uso. Mas vai haver uma insegurança jurídica. Porque sempre vai ficar na valoração de um policial, porque a lei não tem critérios objetivos. Então se eu tiver uma hortinha, o PM pode entender que é para o tráfico", avalia.
"Na verdade, essa decisão tem um caráter simbólico, para mostrar que a gente precisa repensar a política pública em relação as drogas", complementa Gomes. "Países como os EUA, onde se iniciou esse proibicionismo, já estão tendo essa modificação."
O STF já forçou mudanças na Lei de Drogas. A liberdade provisória a presos por tráfico só foi permitida em 2012, quando a Corte, por maioria de votos, derrubou um dispositivo da lei que impedia a concessão. “A regra é a liberdade e a privação da liberdade é a exceção à regra”, disse o então ministro Ayres Britto.
O crime continua sendo inafiançável e insuscetível de sursis, graça, indulto e anistia, o que se aplica tanto ao usuário preso como ao traficante.
Critérios objetivos
A preocupação com o superencarceramento fez com que autoridades se reunissem na sede da Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, na semana passada. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), órgãos do Ministério da Justiça, coletaram as opiniões de membros do Judiciário, Ministério Público, polícia, administração penitenciária e saúde.
O conselho concluiu que a Lei de Drogas não cumpriu seu papel, lotando os presídios brasileiros em razão dos critérios subjetivos de distinção entre o usuário e os pequenos traficantes, e deve editar uma resolução que defina esses critérios.
“Essa distinção hoje é feita sem qualquer critério com um sem número de injustiças”, frisou Vitore André Zilio Maximiniano, secretário nacional de Política sobre Drogas. “O aumento elevadíssimo do número de presos tem impactado nas políticas públicas.”
Para o presidente do CNPCP, Luiz Antonio Silva Bressane, “algo precisa efetivamente ser feito”. “O CNPCP vai trabalhar para trazer essa regulamentação, oferecer um instrumento de interpretação normativo”, disse.
Uma das propostas que deve fazer parte da resolução é a de que o artigo 33 da Lei de Drogas, aquele que define o crime de tráfico, seja interpretado conforme a Constituição Federal. Assim, para condenar um traficante, seria necessária a comprovação de que sua conduta tinha intenção de lucro. Não bastaria mais a simples presença da droga no flagrante.
Já a quantidade limite de droga apreendida não teve consenso e ainda deve ser objeto de estudo. “Não adianta fazer um limite irrisório que não diga a realidade das ruas", defendeu Cristiano Maronna, vice-presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), que faz parte da Plataforma Brasileira de Política Contra as Drogas, união de 18 entidades que pedem mudanças na política de drogas no país.
Para Renato de Vitto, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), “hoje quem faz a gestão da política penal é a Polícia Militar”. “A PM decide na hora, muitas vezes num juízo preconceituoso, quem vai preso. Não vou demonizar a PM, mas isso mostra que o sistema deve ser melhorado. Há uma aplicação disfuncional da lei”, defendeu.
A promotora Camila Gomes destacou que falta estrutura para investigação. "No interior [do Ceará], é difícil de pegar o traficante porque eles se espalham. A gente pega aquela pessoa com pouca droga, porque eles são organizados, não guardam tudo em um lugar só", afirma.
O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, rebateu o argumento e afirmou que a ligação entre o tráfico de drogas e o tráfico de armas tornou o mercado mais violento. “Segurança pública não se faz só com polícia. No caso do tráfico, há a necessidade de uma definição da Justiça. Em várias condutas são feitos termos circunstanciados, mas há casos em que ainda há dúvidas. Nossas fronteiras são um queijo suíço. Nos últimos dois dias, foram apreendidos 4,5t de drogas”, destacou.
“Isso não pode ser uma discussão maniqueísta. Tente arrumar uma testemunha contra um traficante. Primeiro para ver se ela vem. Depois para ver quanto tempo ela dura. O traficante mata, coloca terror onde mora, mexe com a mulher dos outros e mata o marido. A polícia é 100%? A culpa é da polícia que prende? 91% dos presos foram condenados. Então, estão errados o promotor que denunciou, o juiz que condenou e os três desembargadores que mantiveram a condenação? Podem estar todos errados? Pode. Agora, isso é muito mais profundo. Temos que fortalecer a autonomia de cada instituição. O usuário que coloca uma faca no seu pescoço para conseguir dinheiro para comprar droga merece ser preso? Não subestimemos a violência do tráfico”, disse.
Enquanto isso, algumas iniciativas tentam diminuir distorções. No Tribunal de Justiça de São Paulo, teve início o projeto da audiência de custódia, parceria com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Agora, o preso em flagrante é apresentado ao juiz em 24 horas. Segundo o presidente do TJ-SP, José Renato Nalini, a intenção não é desafogar o sistema prisional, mas esta pode ser uma consequência.
"Não que ela vá resolver, porque nós temos uma cultura da prisão enfatizada, de enxergar a prisão como única resposta à delinquência, porém, a tendência a longo prazo será mostrar que a liberdade deverá ser preservada, que grande parte desses presos não deveria entrar no sistema prisional", completa. "Já está impactando, porque nós percebemos que praticamente metade das prisões em flagrante não são convertidas em prisão preventiva. Mas a cultura jurídica é centenária. A gente precisa é convencer a sociedade. Estamos tentando."