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Brasil
11/08/2016 12:31:00
Entenda a polêmica sobre os protestos nas arenas olímpicas
A Rio 2016 diz que vai recorrer da decisão que permite os protestos e que os eventos “não são palcos adequados para manifestações políticas” – o argumento é frágil e fere a Constituição

Época/PCS

Torcedores protestam contra o presidente interino, Michel Temer, durante as finais da equipe de ginástica artística na arena olímpica durante a Rio 2016 (Foto: Thomas COEX/AFP)

Há um ano e meio, quando se candidatou para trabalhar na Rio 2016 e iniciou seu treinamento para atuar na arena de vôlei de praia de Copacabana, uma das mais animadas dos Jogos, a voluntária recebeu uma orientação clara: deveria abordar o torcedor que portasse cartazes, faixas ou exibisse camisetas com manifestações políticas de qualquer conteúdo. Fossem de “Fora, Dilma” ou de “Fora, Temer”.

Ela conta que, segundo a recomendação do Comitê Organizador dos Jogos, se o manifestante se recusasse a guardar o cartaz, ela deveria chamar os agentes da Força Nacional de Segurança, encarregados pelo Ministério da Justiça de patrulhar as arenas esportivas e revistar o público na entrada dos estádios. Poucas manifestações políticas foram vistas até aqui nas arenas esportivas da Olimpíada.

Até a noite de segunda-feira (8), porém, quem protestasse com cartazes ou gritos era convidado a deixar o recinto. Em pelo menos dois episódios no primeiro final de semana da Olimpíada, essa orientação foi seguida: um rapaz que gritou “Fora, Temer!” numa prova de tiro ao arco, no Rio de Janeiro, e um grupo que protestou com os mesmos dizeres em camisetas no Mineirão, durante a partida de futebol feminino entre França e Estados Unidos, foram retirados das arenas – escoltados por agentes da Força Nacional.

Dúvidas sobre os critérios e os limites para a coibição desses protestos levaram o Ministério Público Federal a entrar com uma ação contra a medida do comitê organizador da Rio 2016, a União e o estado do Rio. Ainda na noite de segunda-feira, o juiz federal João Augusto Carneiro de Araújo decidiu que as manifestações políticas deveriam ser permitidas.

O Ministério Público Federal argumentou que as três esferas estavam adotando a prática de “impedir os espectadores dos jogos de exibir cartazes ou usar camisetas com manifestações políticas nas arenas esportivas, obrigando-os a guardar os mesmos e, nos piores casos, retirando-os do recinto por agentes da Força Nacional ou da Polícia Militar”, o que, de acordo com o MPF, passa por cima do princípio constitucional da liberdade de expressão.

O juiz concordou. Para ele, a lei que trata das medidas relativas à Olimpíada no Brasil não proíbe “a manifestação pacífica de cunho político através de cartazes, uso de camisetas e de outros meios lícitos nos locais oficiais dos Jogos Olímpicos”. Proíbe apenas manifestações de caráter racista ou xenófobo. Na sentença, ele fixou multa de “R$ 10 mil por cada ato que viole a presente decisão”.

O Comitê Organizador da Rio 2016 disse, em nota, que vai recorrer. “Recebemos a liminar do juiz João Augusto Carneiro de Araújo e o Comitê vai tomar as medidas jurídicas cabíveis. Pedimos vistas ao juiz. Acreditamos que as instalações esportivas não são palcos adequados para manifestações políticas e religiosas.”

ÉPOCA encaminhou uma série de questões aos organizadores, sobre os critérios para decidir o que é ou não permitido dentro dos eventos, como eles entendem o conflito com a Constituição e como lidam com os casos de protestos em que não há cartazes. As perguntas não foram respondidas na íntegra. Em uma entrevista coletiva, Mario Andrada, da Rio 2016, disse que o Comitê Organizador está respeitando a liminar do juiz.

“A Advocacia-Geral da União ia fazer um apelo, mas desistiu. Nós vamos fazer um apelo. Deixamos claro que as arenas esportivas, de acordo com a Carta Olímpica, são espaços livres de manifestação religiosa ou de intolerância.” Sobre o conflito com o que diz a Constituição, Andrada respondeu que “quem resolve esse tipo de dúvida são os juristas. Eu não sou jurista, não sei se você é, e para isso tem o sistema judicial brasileiro. Você faz um apelo, você faz um agravo, o sistema funciona assim. É importante que a gente não desrespeite a ordem do juiz e não desrespeite a lei”.

Na nota inicial e nas conversas com os dirigentes da Rio 2016, o Comitê Organizador não apresenta argumentos que justifiquem a orientação para proibir protestos políticos nas arenas. A confusão da Rio 2016 sugere que os dirigentes do Comitê não têm boas respostas a oferecer.

“Acreditar que as instalações esportivas não são palcos adequados” para protestos dificilmente constitui um argumento – muito menos um argumento jurídico, que ajudaria, no mínimo, a esclarecer o assunto, iluminando a natureza dos critérios dos organizadores. Primeiramente, vale esclarecer o que é direito fundamental no Brasil: a Constituição brasileira garante o direito à livre expressão.

Na hierarquia jurídica, nada é maior do que a Constituição. Por isso, na lei promulgada em maio deste ano para regulamentar os Jogos Olímpicos – lei assinada por Dilma e similar à que regulamentou a Copa de 2014 –, o texto faz justamente essa ressalva. O Artigo 28 da lei proíbe manifestações de caráter “ofensivo, xenófobo, racista ou que estimulem outras formas de discriminação” – o que é crime e deve, evidentemente, ser punido. Em seguida, proíbe também bandeiras “que não sejam para fins festivos ou amigáveis”, sem detalhar o que se enquadra nesses quesitos.

A legislação não faz referência a protestos políticos. E salienta que “é ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”. Portanto, a lei criada especificamente para os Jogos deixa claro que o direito de se manifestar, desde que de forma não ofensiva, é inviolável.

Em 2014, quando o Brasil recebeu a Copa do Mundo, houve uma discussão similar sobre o que seria permitido dentro dos estádios. O país já vivia tempos de turbulência política. Protestos tornaram-se comuns nos jogos. A lei aprovada para a Copa continha um trecho quase idêntico ao da lei deste ano.

Ele proibia o uso de bandeiras “para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável” – as manifestações de cunho político, novamente, não foram abordadas. O PSDB foi ao Supremo questionar a restrição. Os ministros entenderam, por 8 a 2, que o texto era constitucional. O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, afirmou que a lei era necessária porque ajudava a garantir a segurança dos torcedores.

Um trecho do acórdão diz que “o legislador, no caso, a partir de juízo de ponderação, parece ter objetivado limitar manifestações que tenderiam a gerar maiores conflitos e a atentar não apenas contra o evento em si, mas, principalmente, contra a segurança dos demais participantes”.

Procurado para falar sobre o que vem acontecendo nas arenas olímpicas, Gilmar Mendes reiterou o argumento. Ele disse que torcedores só devem ser retirados dos eventos se usarem objetos para se manifestar que possam oferecer perigo à segurança dos demais.

“Enquanto a questão envolver segurança, a mim me parece que se justifica que alguém não possa colocar um cartaz que tenha uma madeira, porque daqui a pouco estará ofendendo a integridade física de outro, mas uma manifestação escrita numa camisa, ou coisa do tipo, não faz sentido que alguém determine que o seu portador tenha que retirá-la ou coisa do tipo”, afirmou Gilmar, em um evento sobre liberdade de expressão, em Brasília.

“Tudo envolve, primeiro, a questão do pacto que se faz, da aceitação que o país empresta às condições estabelecidas por essas organizações [como o COI]. Mas se de fato se estabeleceu que não poderia haver manifestação de nenhuma índole nos estádios, certamente quem negociou e depois aprovou isso certamente extrapolou determinados limites”, disse o ministro.

A organização da Rio 2016 argumenta que a coibição de manifestações políticas e religiosas nos estádios e nas arenas segue diretrizes estabelecidas pelo Comitê Olímpico Internacional – mas que não têm validade de lei.

Uma delas impede que os jogos “sejam utilizados como uma plataforma para protestos, manifestações ou outro tipo de promoção de propaganda política, religiosa ou racial” – o chamado Artigo 50 do COI. A regra é aplicada para todos os atletas, dirigentes e pessoas credenciadas nas áreas olímpicas, como a Vila Olímpica, arenas ou estádios.

Nada diz sobre os torcedores. O texto do COI diz que “a regra 50 não se destina a abafar o debate público sobre qualquer assunto. Porém, o COI acredita que a Vila Olímpica e outros locais dos jogos deverão se focar no esporte e permanecer livre de propaganda, publicidade ou qualquer tipo de manifestação política, religiosa ou propaganda racial”.

Nos Jogos do México, em 1968, por exemplo, o velocista Tommie Smith foi obrigado a devolver sua medalha depois de fazer o gesto do movimento Black Power, com o punho direito cerrado ao alto, ao vencer sua prova. As maiores punições para quem desobedece a esses princípios são aos atletas, para quem a regra 50 é explicada como se complementasse as regras dos esportes que praticam.

Autorizações são necessárias até se o atleta quiser homenagear um ente morto durante uma prova. O COI, no entanto, não vê problemas sobre os atletas militares que batem continência no pódio. “Vemos isso como um respeito à bandeira, ao país”, diz Mark Adams, diretor de Comunicação do COI.

Desde 1996, em Atlanta, o COI tem agido de forma mais dura com os países sede, para que os organizadores locais evitem que os Jogos sejam palcos de manifestações políticas. Em 2008, às vésperas dos Jogos Olímpicos de Pequim, na China, a cúpula do Partido Comunista chinês tentou subverter a autonomia do COI, declarando que poderia “definitivamente esmagar a trama separatista do Dalai-Lama” quando a tocha olímpica passava pelo Tibete. O COI retaliou imediatamente, constrangendo os próceres chineses. Criticou a junção da política ao esporte e cobrou da China: “Assegurem que situações semelhantes não voltem a se repetir”.

Elas não voltaram. A Rússia de 2013 passava por uma controversa política de cerceamento das liberdades da causa gay quando recebeu os Jogos de Inverno de Sochi. Muitos enxergaram a oportunidade para protestar. O COI se antecipou e prometeu agir com vigor diante de qualquer demonstração política sobre o assunto em áreas olímpicas. Uma autoridade do COI ouvida na ocasião evocou as cláusulas da regra 50, que estava em vigor “havia muitos anos e é aplicada quando necessário.”