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Mais de 300 cidades do país têm mais eleitores que habitantes. É o que aponta um levantamento feito pelo G1 com os dados do eleitorado apto a votar nas eleições de 2018, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e as estimativas populacionais de cada município do Brasil, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na última quarta-feira (29).
Todas as 308 cidades têm porte pequeno. Grande parte (84,7%) tem até 5 mil habitantes, sendo que a maior de todas, Canaã dos Carajás, no Pará, tem 36 mil pessoas. Ela é também a cidade com a maior diferença absoluta entre o número de eleitores e o de habitantes: são 3.805 eleitores a mais.
A maior diferença proporcional é encontrada em Severiano Melo, no Rio Grande do Norte, onde o número de eleitores é 2,2 vezes o de habitantes (6.259 eleitores e 2.799 habitantes). Já na outra ponta da lista, Balbinos, no interior de São Paulo, é a cidade com a menor proporção de eleitores em relação a sua população: 26,9%. São 1.488 eleitores, com população estimada de 5.532 pessoas.
Domicílio civil e eleitoral
De acordo com o TSE, as desproporcionalidades entre os números de eleitores e de habitantes em algumas cidades do país ocorrem porque o IBGE trabalha com o conceito de município de residência das pessoas, enquanto que o TSE trabalha com o conceito de domicílio eleitoral. Isso quer dizer que as pessoas podem morar em uma cidade, mas votar em outra, o que pode gerar incongruências no cruzamento dos dados.
O Código Eleitoral diz que “é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente”. Porém, o TSE flexibiliza esse entendimento de forma a aceitar como domicílio eleitoral locais com os quais os eleitores (e candidatos) demonstrem vínculo político, social, afetivo, patrimonial ou de negócios.
"Como o conceito era muito amplo, o TSE delimitou que, além do domicílio civil, onde a gente mora, a pessoa pode optar por outras modalidades no momento de se inscrever como eleitor. Por exemplo, o domicílio patrimonial. Embora eu não more na cidade, tenho uma propriedade nela. Ou o domicílio empresarial. Eu não moro, mas tenho empresa, negócio, indústria, fazenda", explica o desembargador Rogério Medeiros, corregedor e vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG).
"Às vezes, a pessoa prefere votar em outro lugar [além da cidade em que mora]", diz o desembargador Rogério Medeiros, do TRE-MG.
Segundo o desembargador, é muito comum as pessoas terem diferentes domicílios civis e eleitorais em Minas Gerais, ainda mais considerando que o estado é o que possui o maior número de cidades do país (853). Não por acaso, Minas também é o estado com o maior número de municípios com mais eleitores do que habitantes: são 93 cidades.
"O pessoal sai muito do interior para morar em outras cidades maiores, como Belo Horizonte, Montes Claros e Varginha. Mas todo mundo tem seu interior e pode preferir votar lá", afirma Medeiros.
O presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Glademir Aroldi, também aponta a mesma situação. "Em cidades pequenas, é comum os jovens irem estudar em outros lugares. Eles se formam e acabam ficando na cidade em que estudaram, mas o domicílio eleitoral continua o da cidade natal", comenta.
Aroldi ainda afirma que muitos prefeitos apontam as estimativas populacionais do IBGE como abaixo da realidade. De acordo com nota técnica do próprio instituto, a estimativa é calculada a partir da “tendência de crescimento populacional do município, entre dois Censos demográficos consecutivos”, em relação à tendência de crescimento dos estados, verificada na projeção de população (cuja revisão 2018 foi divulgada em julho).
"Tem muito município em que a população é maior que a estimada pelo IBGE. Vai que uma cidade diminuiu de acordo com o Censo de 2010. Aplicar essa mesma tendência de queda para os anos seguintes pode não ser a realidade. Só um novo Censo vai mostrar a situação real", diz Glademir Aroldi, presidente da CNM.
Em nota, o TSE também ressalta o fato de o IBGE trabalhar com estimativas, enquanto que a Justiça Eleitoral utiliza os dados cadastrais pertinentes ao histórico de cada título eleitoral.
O desembargador Medeiros ainda destaca que sempre existe a possibilidade de fraude eleitoral por trás das cidades com mais eleitores que habitantes.
"Às vezes, em cidade pequena, algum futuro candidato mal intencionado arregimenta pessoas e ônibus e começa a fazer transferência eleitoral para conseguir votos. A depender do tamanho da população, um ou dois ônibus já resolvem a eleição", diz Medeiros.
Revisão eleitoral e biometria
Segundo o TSE, quando os números entre eleitores e habitantes é muito discrepante, a Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral, em âmbito nacional, e as Corregedorias regionais eleitorais, nos respectivos estados, podem decidir por realizar uma revisão eleitoral na cidade.
O desembargador Medeiros aponta que o próprio sistema da Justiça Eleitoral acusa automaticamente casos em que há indícios de fraude e crescimento anormal de eleitores. "Sempre que o número de eleitores ultrapassa mais de 60% da população ou o número de transferência de eleitores for muito alto de um ano para o outro, com crescimento de mais de 10%, o sistema acusa. Esses critérios estão previstos na legislação", afirma.
Após o alerta, as cidades são passíveis de revisão. "O TRE marca uma data, anuncia previamente e funcionários vão até a localidade. Todo mundo tem que comparecer, mesmo que esteja em situação regular com a Justiça Eleitoral. Quem comparecer e não provar vínculo com a localidade tem a inscrição cancelada", diz Medeiros. No caso das fraudes, um inquérito criminal pode ser aberto.
Em 2017, a Corregedoria do TRE-MG emitiu duas instruções para a realização de correição eleitoral (checagem inicial dos eleitores residentes na cidade) em 13 municípios mineiros. Outros TREs também realizam esse procedimento, em caso de denúncias de fraude ou divergências entre o número de habitantes e do eleitorado.
Além da revisão motivada por irregularidades apontadas pelo sistema eleitoral, também está em curso no país já há alguns anos o cadastramento biométrico, que acaba atualizando os dados dos eleitores no momento do registro das digitais. O processo também pode ajudar a diminuir o número de casos de cidades com mais eleitores que habitantes.
No caso de Minas, por exemplo, das 93 cidades com mais eleitores que habitantes, em 75, mais de 70% do eleitorado ainda não realizou o cadastramento biométrico. Considerando todo o país, 117 das 308 cidades estão na mesma situação, com 70% dos eleitores sem a digital cadastrada.
O desembargador destaca, porém, que tanto o processo de alistamento eleitoral quanto o de revisão (seja por meio da biometria ou por acusação do sistema) estão suspensos desde maio por conta das eleições. O processo apenas será retomado após o segundo turno.
"Após as eleições, nós planejamos fazer as revisões em cidades em que houve anomalias e também ir em outras cidades para aumentar o cadastramento biométrico", afirma o desembargador.
"O alistamento biométrico é obrigatório, então, a medida em que o cadastro for avançando no país, a tendência vai ser de diminuição das anomalias", diz Medeiros.
Segundo o TSE, a meta da Justiça Eleitoral é identificar 100% dos eleitores por meio da impressão digital até 2022.