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Brasil
29/10/2020 16:35:00
O déspota do atraso
O movimento de resistência à vacina já é considerado uma das dez maiores ameaças para a saúde global, alerta a OMS.

IstoÉ/PCS

Jair Bolsonaro cancela a aquisição de vacina chinesa por motivos políticos e frita mais um ministro da Saúde — o terceiro em plena pandemia.

Presidente mirou as milícias digitais e disse que não comprará a “vacina chinesa do João Doria”

Também afirma que a vacinação não será obrigatória. Mais uma vez coloca seu interesse eleitoral acima da necessidade dos brasileiros, que pagam o preço da irresponsabilidade com suas vidas. Para o País, a politização da doença e o avanço negacionista é uma regressão de mais de cem anos no debate sobre a saúde pública. Voltamos à época da revolta da vacina, quando oportunistas exploravam rivalidades e atacavam os agentes públicos alegando a defesa das liberdades individuais. Governadores se mobilizam e defendem que o Ministério da Saúde disponibilize a Coronavac, produzida no Instituto Butantan e defendida pelo governador João Doria.

A briga pode chegar ao STF

O movimento de resistência à vacina já é considerado uma das dez maiores ameaças para a saúde global, alerta a OMS. É tão perigoso quanto os próprios vírus que avançam sobre o planeta e ameaça reverter o progresso no combate a doenças como sarampo e poliomielite, que salva até 3 milhões de vidas por ano. Falta de confiança, complacência, dificuldades de acesso e motivos religiosos são algumas das causas desse fenômeno retrógrado que alimenta as moléstias, ao invés de combatê-las. Em pleno século XXI, a ciência é colocada à prova. Essa manifestação negacionista se propaga nas redes sociais e pode atrapalhar o combate à Covid-19, alertam entidades que monitoram a internet.

Nos EUA, Donald Trump já associou vacinas infantis ao autismo. Ainda limitada no Brasil, essa onda também está contaminando o campo político, e o presidente é o maior responsável. Jair Bolsonaro bloqueou a compra da vacina de origem chinesa Coronavac, que será produzida pelo Instituto Butantan, e será disponibilizada já no final do ano. Seu objetivo foi apenas impedir que o governador João Doria, grande patrocinador da compra e produção do imunizante, receba os créditos. Mais uma vez o mandatário pratica uma política mesquinha e criminosa com a intenção de ofuscar seus adversários, ignorando a saúde da população.

O anúncio estapafúrdio aconteceu na última terça-feira, 20, quando Bolsonaro se deu conta da repercussão do anúncio feito pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, de que compraria 46 milhões doses da vacina, a serem disponibilizadas pelo SUS já no mês de janeiro. Foi uma divulgação solene. Aconteceu em reunião virtual que reuniu 24 governadores. O presidente implodiu esse acordo de olho na sua militância digital, que se queixou nas redes do protagonismo do governador paulista. Desautorizou publicamente Pazuello, que estaria “querendo aparecer como o Mandetta” e “gostando dos holofotes”. “Aqui, mando eu!”, disse o mandatário em mais um lampejo despótico, e sugeriu que tinha sido “traído”.

Exigiu que a pasta informasse que o ministro tinha sido “mal interpretado”, ainda que Pazuello tenha sido efetivado exatamente por cumprir todas as determinações presidenciais, o que inclui a divulgação da cloroquina. É o método bolsonarista de governar. O presidente volta atrás em suas decisões de forma caótica e ignora as consequências, além de fritar subordinados que o ameacem. Pazuello já é o terceiro ministro da Saúde a ir para a frigideira em plena pandemia, depois de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

Ao rechaçar esse imunizante, o presidente mostra mais uma vez seu desprezo pela saúde. Tentou argumentar que não iria endossar uma vacina sem aprovação da Anvisa nem usar a população como “cobaia”. É uma falácia. O governo está comprando 100 milhões de doses da vacina Oxford-AstraZeneca, que também ainda não foi aprovada pela agência e está no mesmo estágio de testes — a fase 3, a última antes da comercialização. Além disso, Bolsonaro sempre defendeu de forma irresponsável o uso da cloroquina, ainda que estudos tenham mostrado que não há comprovação de sua eficácia contra a Covid-19, além de causar perigosos efeitos colaterais — por ordem de Bolsonaro, o Exército produziu até julho 3 milhões de comprimidos da droga. O compromisso com a Coronavac permitiria a aceleração da sua produção e deixaria o SUS preparado para avançar na distribuição em escala nacional assim que estiver disponível.

“Mesmo que a vacina seja aprovada pela Anvisa, ele não vai comprar. Proibir o acesso a ela é criminoso”

João Doria, governador de São Paulo

Essa é a última preocupação de Bolsonaro. O recuo politiqueiro prova mais uma vez que o presidente está obcecado com as eleições de 2022, exatamente a crítica que faz ao governador paulista — ainda que Doria esteja utilizando a vacina como vitrine de sua gestão, é legítimo que se beneficie por ter viabilizado em prazo tão curto uma das promessas de combate à doença. O cavalo de pau também comprova que o presidente governa para os próprios apoiadores. Ao criticar a “vacina chinesa do João Doria”, mais uma vez tenta armar suas milícias digitais e mostra submissão aos EUA, já que Donald Trump tenta usar o mesmo argumento — o combate à “ditadura chinesa” — para se defender da ação negligente na pandemia. E de quebra Bolsonaro ainda ataca nosso principal parceiro comercial.

O próprio ministro Pazuello, em reunião com Doria, havia admitido que a maioria das vacinas fabricadas no mundo utilizam componentes produzidos na China. Também reconheceu a importância do Instituto Butantan, ao dizer que a instituição já fornece a maior parte dos imunizantes comprados pela sua pasta. Por fim, afirmou que a fórmula da Sinovac será produzida no Brasil e, por isso, o governo a trataria como a “vacina brasileira”.

São declarações de bom senso. Por isso, irritaram o presidente que está em permanente guerra ideológica e tem a obsessão de atingir seus oponentes visando a próxima corrida presidencial — nem a morte por causa do novo coronavírus do senador Arolde de Oliveira (PSD), um aliado político que defendia a cloroquina, o constrangeu.

A politização da vacina também levou à discussão de sua obrigatoriedade. Doria havia declarado que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória no estado. Bolsonaro declarou que a população não precisaria se vacinar, contradizendo uma lei que ele mesmo sancionou no início do ano. A norma aprovada pelo Congresso estabelece que para o enfrentamento da Covid-19 poderão ser adotadas medidas como “determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas”. “Meu ministro da Saúde já disse que não será obrigatória essa vacina e ponto final”, disse o presidente irritado no último fim de semana. Especialistas apontam os danos que esse discurso pode causar.

“Discutir a obrigatoriedade da vacina agora é inoportuno. Vai despertar um sentimento de desconfiança. As vacinas no Brasil são encaradas como um direito e não um dever. Obrigatoriedade a gente faz com restrição civil. Do tipo: não vai poder matricular o filho na escola sem vacinação”, diz a microbióloga Natália Pasternak. “A polarização tirou a racionalidade das discussões da política brasileira. A obrigatoriedade em vacinas já existe. Para matricular as crianças em escolas, por exemplo. Tem aspectos da vida social que não dá para as pessoas decidirem. A obrigatoriedade faz parte da civilização. Existe um clima de Fla X Flu que vai até 2022, o que um falar o outro vai contrariar”, diz o cientista político Rubens Figueiredo.

A briga política já avança no Congresso e no STF. O ex-ministro Mandetta disparou: “Bolsonaro está penalizando a pesquisa, a ciência. Em vez de jogar pedra e sabotar, ele tinha que procurar alternativas para produzir mais. É muito pequeno, muito míope”. Os governadores, que estavam satisfeitos com Pazuello, ficaram indignados. “Bolsonaro agora quer fazer a guerra das vacinas. Só pensa em palanque e guerra”, disse Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. “Não se pode jamais colocar posições ideológicas acima da preservação de vidas”, protestou Camilo Santana (PT), governador do Ceará. “Mesmo que a vacina do Butantan seja aprovada pela Anvisa, Bolsonaro não vai permitir a compra. Proibir o acesso à vacina é criminoso”, disse Doria. Na guerra de narrativas, Bolsonaro perdeu feio e deu um trunfo ao governador paulista.

Judicialização

Doria disse que os governadores avaliam acionar o STF para exigir que o Ministério da Saúde compre o medicamento. A Rede Sustentabilidade já protocolou no STF uma ação para determinar que o governo compre as 46 milhões de doses. Para o jurista Miguel Reale Jr., o veto à compra configura mais um crime de responsabilidade do presidente. Até o momento, a Anvisa, como deveria ser, está voltada apenas para o protocolo sanitário de liberação do imunizante. “Para nós, pouco importa de onde vem a vacina ou qual é o seu país de origem. O nosso dever constitucional é oferecer resposta de que esses produtos têm ou não têm qualidade, segurança e eficácia”, disse o seu diretor-presidente, o almirante Antonio Barra Torres, após reunião com o governador paulista, na quarta-feira, 21.

Resta saber se ele manterá essa atitude técnica e de independência. O histórico não é favorável. Ele apoiou pessoalmente, de câmara na mão, o presidente em um protesto em Brasília, em março, contra o isolamento social. Em nome do controle científico, Bolsonaro ameaça controlar a agência. Quatro novos diretores da Anvisa foram indicados recentemente pelo presidente, que, em tese, passa a ter o controle sobre ela. Há dúvidas sobre a isenção do órgão para julgar aprovação dos imunizantes.

Atrasar a liberação da “vacina chinesa” pode ser conveniente para sua estratégia política. Essa politização de um tema que deveria ser reservado aos especialistas também abala a confiança da população na ciência. Os testes e o respeito aos protocolos internacionais deveriam guiar as autoridades, e não afinidades político-ideológicas. É uma característica dos líderes populistas renegar o conhecimento científico. Bolsonaro já demonstrou que deseja desmontar o arcabouço de pesquisa nacional. Também regridiu em mais de 100 anos o debate sobre a saúde pública.

Revolta da vacina

O País já havia enfrentado a revolta da vacina em 1904, contra a lei que determinava a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Naquela época, também houve exploração política contra o imunizante, inclusive apontando a violação de liberdades individuais — exatamente o mesmo argumento dos bolsonaristas agora. Na época, ocorreu uma reação à modernização urbana e sanitária e também aos métodos autoritários das autoridades da época.

Mas a exploração marota de políticos conseguiu explorar a desinformação e atrasar o progresso na área médica. Desde então, movimentos antivacina tiveram pouca aderência no País, ao contrário de EUA e Europa. “A população brasileira sempre foi favorável e receptiva à vacinação e sempre tivemos uma boa adesão”, diz Natália Pasternak. A pólio foi eliminada no Brasil em 1994 e a própria varíola já foi erradicada globalmente.

Na corrida das vacinas, a Coronavac é uma das maiores promessas contra o novo coronavírus. É uma das dez que já estão na fase 3, entre as 193 em desenvolvimento. “No Butantan, 2.500 pessoas se dedicam dia e noite”, disse o diretor do Instituto, Dimas Covas. A Oxford-Astrazeneca, que o governo já adquiriu, também está na etapa final, apesar da morte na última semana de um médico do Rio de Janeiro que estava no grupo de testes — ele havia recebido o placebo.

No interesse da população, o governo deveria abraçar o maior número possível de imunizantes, inclusive porque todos ainda precisam passar pelo teste da eficácia. Também por razões logísticas, financeiras e estratégicas, o Ministério da Saúde não deveria limitar sua opções. Há um enorme desafio de fazer a vacina chegar a toda a população no menor espaço de tempo possível. Conspirações e teorias persecutórias só fazem o País perder um tempo precioso. Desacreditar vacinas que nem foram referendadas ainda, em plena emergência sanitária, mais uma vez deixa estampados o descaso e a omissão do presidente.