VERSÃO DE IMPRESSÃO
Brasil
29/02/2020 08:34:00
O presidente cria um acirrado confronto com o Congresso e o STF

IstoÉ/PCS

O clã Bolsonaro pulou o carnaval no celular: mensagem contra a democracia e reincidência em crime de responsabilidade (Crédito: Divulgação) (Foto: Divulgação)

“Vivandeiras alvoroçadas” era a forma como o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro ditador do regime militar que se apossou do poder no Brasil em 1964, costumava definir os civis que batiam à porta das casernas sempre que queriam promover uma ruptura institucional ou enxovalhar o Congresso Nacional. Agora, sob o desgoverno do presidente da República Jair Bolsonaro, sob o ataque às instituições e sob a reincidência de crimes de responsabilidade por ele cometidos, pode-se dizer que são alguns militares que se alvoroçam em vivandeiras e ferem os sustentáculos constitucionais da democracia e do Estado de Direito.

Militares, militares, política à parte (ou, pelo menos, deveria ser) Post golpista de convocação para ato contra o Congresso, tentando confundir a população de que todos os generais são a favor da manifestação. Da esquerda para a direita: Mario Araújo, general e secretário de Segurança de Minas Gerais; Hamilton Mourão, general e vice-presidente da República; Augusto Heleno, general e ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Roberto Peternelli, general e deputado federal (exigiu que sua imagem fosse retirada) (Crédito:Divulgação)

São nostálgicos da lama, e seus objetivos mantêm-se os mesmos: criar, cada dia mais, um acirrado confronto com a Câmara dos Deputados, Senado e Supremo Tribunal Federal, porque é nesse clima de instabilidade política e anomia social que se pavimenta o maldito caminho que, deliram eles, pode levar ao golpe de Estado e à perpetuação no poder — não foi outra, por exemplo, a política populista na Venezuela, e hoje sabemos do abismo em que ela despencou. O presidente Bolsonaro, há tempo, vem testando limites. Dessa vez, no entanto, extrapolou. Nenhum outro governante jamais foi tão ousado como o capitão da reserva o foi na semana passada.

Jair Bolsonaro, representante máximo do Poder Executivo nacional, disparou de seu celular uma mensagem na qual conclama a população a protestar contra os congressistas. Ele se defende, alegando que enviou a tal mensagem a amigos. Pois bem, para amigos o presidente pode mandar, por exemplo, comentários sobre futebol. Mas, como mandatário, jamais poderia encaminhar o que encaminhou, com o Hino Nacional feito trilha sonora: “-15 de março. Gen Heleno / Cap Bolsonaro. O Brasil é nosso. Não dos políticos de sempre”. Tem mais: “Ele foi chamado a lutar por nós (…), ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda sanguinária e corrupta”. É importante observarmos que, o “15 de março”, do início do texto, é a data da manifestação que bolsonaristas e a extrema-direita golpistas marcaram para protestar contra o Parlamento e o STF – e as convocatórias criminosamente propõem o fechamento de ambos e a volta do famigerado AI-5 da ditadura. Qualquer cidadão é livre para protestar contra quem quiser, mas Bolsonaro, como chefe do Executivo, não pode ter o seu nome ligado a atos contra os demais poderes republicanos.

O empresário e o caminhão

O que Bolsonaro fez é crime de responsabilidade, mais um a ensejar o impeachment. É subversão! Nenhum poder republicano pode insuflar o povo contra outro poder, e fazê-lo significa subverter a ordem legal e constitucional, prevista no artigo 2º da Carta Magna, a fixar que os três poderes têm de funcionar com pesos, freios e contrapesos, de tal forma a dar-lhes independência, mas, também, harmonia. No momento em que um deles (Executivo, Legislativo, Judiciário) se insurge contrariamente aos demais, está atuando fora da legalidade. É, portanto, constitucionalmente, um gesto subversivo. Por que? Porque o Estado de Direito e a democracia têm, como definição precípua, colocar limites a si próprios. Romper esses limites é subverter a ordem. No âmbito de qualquer teoria e conceito de Estado democrático e liberal, configurou-se, na última semana, um dos maiores ataques institucionais e contrários a República na história brasileira. Mas, em contrapartida, a reação em cadeia em defesa da legalidade foi imediata. E arrasadora.

Uma das respostas mais contundentes veio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos principais intelectuais brasileiros que sentiu na carne o regime de exceção quando se viu obrigado a integrar a diáspora de perseguidos pela ditadura. “(…) Estamos com uma crise institucional de consequências gravíssimas. Calar seria concordar. Melhor gritar enquanto se tem voz, mesmo no Carnaval, com poucos ouvindo”, escreveu ele nas redes sociais. Claro que ao levar diversos militares, alguns na ativa, para o Palácio do Planalto, Bolsonaro sabe que tem mais chances de sustentação política pela farda. Uma voz da reserva, porém, em cujas estrelas de general brilha o respeito das Três Armas, levantou-se energicamente contra um post que circulou com imagens de quatro militares (entre elas a do vice-presidente Hamilton Mourão e a do ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno), unindo-os à manifestação do próximo dia 15. Trata-se do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo. Escreveu ele: “Exército (…) instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais (…). Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população”.

Existe, embora ainda seja tímido, um grupo de militares que se preocupa, e muito, com a ilusória sobreposição do governo e das Forças Armadas, até porque, com essa intenção, Bolsonaro leva cada vez mais militares para trabalharem no Planalto. Santos Cruz resumiu a preocupação de que a instituição e as posições radicais do presidente acabem confundidas. E, não esqueçamos, que o capitão já tentou promover isso no ano passado, tanto contra o Congresso quanto contrariamente ao STF.

Como já se disse, ele vai subvertendo a democracia e testando limites. Tem apoio para isso, como o do empresário Otavio Fakhoury, um dos financiadores do site “Mkt Bolsonaro”. “Não vou deixar esses canalhas derubarem o governo”, diz ele. “Vou ajudar a pagar o máximo de caminhões que puder”. No site de Fakhoury há empresários, investidores do mercado financeiro e também Carlos Costa, chefe da Secretaria Especial de Produtividade, órgão ligado ao Ministério da Economia. É nessa toada que o presidente segue o seu roteiro.

Sem dúvida todos nós lembramos do Carnaval do golden shower, no ano passado. Doze atribulados meses se passaram, e agora vivenciamos o Carnaval do mais grave, sério eperigoso ataque do Poder Executivo visando à ruptura de instituições. O ministro Augusto Heleno e Jair Bolsonaro rasgaram preceitos da Constituição como se rasgam e se descartam fantasias.

O primeiro a ferir a legalidade foi Augusto Heleno e o segundo, Bolsonaro — como nenhum dos dois são bisonhos, valendo-se aqui de uma expressão ligada aos quartéis, difícil crer que não estivessem combinados. No último dia 18, em cerimônia de hasteamento da Bandeira Nacional diante do Palácio da Alvorada, um vazamento no sistema de som do próprio governo trouxe a público absurdas ofensas do ministro aos parlamentares (vale indagar: será que o responsável pela segurança institucional não queria mesmo o vazamento?).

“Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se”. Referia-se Heleno, assim, à legítima articulação parlamentar para derrubar vetos presidenciais ao Orçamento impositivo. Voltando-se bastante no tempo e relembrando a tenebrosa época do AI-5, que Heleno apoiou em 1968, o seu “foda-se” é uma escala ainda mais baixa que a fala do coronel e ministro Jarbas Passarinho na reunião que decidiu pelo fechamento do Congresso naquele ano: “Às favas, senhor presidente, nesse momento, todos os escrúpulos de consciência”. O palavrão de Heleno superou o desdém de Passarinho pela legalidade e funcionou como uma espécie de senha para que militantes bolsonaristas e não bolsonaristas extremistas passassem a convocar a população para um ato público contra o Congresso e o STF.

“Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente o tempo todo. Foda-se” General Augusto Heleno, ofendendo os parlamentares

É uma afronta inaudita ao Legislativo o que ocorreu nos últimos dias no Brasil. No post que corre nas redes sociais lê-se que “os militares aguardam as ordens do povo”. Ordens para quê, ministro Augusto Heleno? Ordens para quê, presidente Jair Bolsonaro? Ainda que eles não possam ser diretamente responsabilizados por tal post (fato que facilmente alegam em sua defesa), é o clima de balbúrdia política plantado pelo governo que causa coisas desse tipo.

O Poder Executivo tem de aprender o que não quer: os parlamentares estão investidos de mandato popular que lhes foi concedido pelo sufrágio universal, voto secreto e periódico, como manda a lei. Levantar-se contra isso é quebrar a legalidade. É cometer crime de responsabilidade. Os parlamentares são o poder originário a constituir os demais poderes. O general Heleno, por exemplo, não representa absolutamente ninguém, jamais foi votado, é apenas um ocupante do estamento burocrático governamental escolhido por Bolsonaro. Heleno tem de respeitar com todas as letras o Congresso Nacional.

Em tempo: ministro Heleno, membros do Poder Legislativo não são “esses caras” conforme o senhor disse, são donos de mandato do povo. O presidente, por sua vez, deve restringir-se ao Poder Executivo e às articulações políticas com o Legislativo (o que ele não faz, contrariando a democracia), obedecendo a tripartição dos poderes. Em vez disso, ao que se assiste é ele desrespeitando normas, falando em ordem social, desde que seja a sua ordem social, apoiando greves ilegais como a dos policiais no Ceará, elogiando milicianos como o fez quando deputado, enaltecendo torturadores da ditadura. Tudo isso engrossa um caldo de cultura contra as instituições — já vimos esse filme, em preto e branco e a cores. O ataque de agora foi gestado cuidadosamente no dia a dia. Há tempo Bolsonaro quer instigar o povo contra os poderes, fato intolerável numa democracia liberal.

O povo exerce o poder

Os verdadeiros democratas também não são bisonhos, talquei? O decano e ministro do STF, Celso de Mello, foi preciso: “a mensagem de Jair Bolsonaro convocando seus seguidores para protesto contra o Congresso e o STF revela a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional”. Mais: “(…) que ignora o sentido fundamental da separação de poderes”. Mais ainda: “mostra uma visão indigna de quem não está à altura do cargo”. Para o ex-presidente Lula, “Bolsonaro tem de respeitar a cadeira de presidente”. O governador de São Paulo, o democrata e liberal João Doria, foi enfático e corajoso, uniu passado e presente para clarear a memória daqueles que se fazem de desmemoriados: “O Brasil lutou muito para resgatar sua democracia. Devemos repudiar com veemência qualquer ato que desrespeite as instituições e os pilares democráticos. Lamentável o apoio do presidente a uma manifestação contra o Congresso Nacional”. O que o presidente fez é fato inédito na história de nossa República, decretada numa Câmara de Vereança e não proclamada com participação popular, como observou no dia 15 de novembro de 1889 o jornalista Aristides Lobo. Por isso, ela às vezes parece anêmica e frágil! E esse é mais um motivo para prestar atenção ao líder da oposição ao governo Bolsonaro na Câmara, deputado Alessandro Molon. Deu ele um importante recado à Nação: basta de passarmos a mão na cabeça de Bolsonaro e de muitos de seus “acepipes” fardados. Ele está certo, porque daqui a pouco os democratas é que não terão mais as suas próprias cabeças para alisarem. É tamanha a gravidade do atual momento, que, pela primeira vez na vida política brasileira, Congresso e STF se reunirão para discutir a situação. “Temos de parar Bolsonaro. Ou defendemos a democracia agora ou não teremos mais nada para defender em breve”. Com Molon, que é civil, concorda o general e deputado federal Roberto Peternelli. Colocaram a sua foto no post, e ele não titubeou: “Não autorizo a utilização da minha imagem. As Forças Armadas pertencem ao Estado”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também veio a público: “Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições”.

Se os defensores da democracia seguirem passando a mão na cabeça de Bolsonaro, logo não terão mais as suas próprias cabeças para alisarem

Claro que Bolsonaro, Augusto Heleno e companhia não assimilarão a lição, tanto que Eduardo Bolsonaro, filho do presidente que se julga presidente, indagou na quarta-feira de cinzas: “o povo choraria caso houvesse uma bomba H no Congresso?”. Isso é fala de terrorismo, isso também é subversão. Mas se eles pensam que possuem unanimidade na ativa e na reserva para seguirem atentando contra a República, estão a padecer daquilo que Maia classificou como “ideologia radical e extrema”. Isso acometeu, por exemplo, os militares do Movimento Tenentista, nos anos 1920 (embora eles lutassem por eleições secretas e decentes), e a alta oficialidade, em 1964: é a ideologia da onipotência, que já tanto sangue derramou em nosso chão. Bolsonaro e Heleno precisam interiorizar que a Constituição da ditadura morreu. Ela dizia: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Exercido por quem? Por autocratas.

A atual Carta, democrática e cidadã, determina: todo poder emana do povo, que o exercerá diretamente (por meio de conselhos federais, estaduais e municipais) ou por intermédio de parlamentares eleitos. Portanto, todo respeito aos deputados e senadores.

Informações da Revista IstoÉ