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Quem passa pela rua A Dezesseis, no Benedito Bentes, bairro da periferia de Maceió, não consegue imaginar que um dos imóveis guarda uma história intrigante, digna de um enredo do escritor norte-americano Stephen King. Uma casa de esquina, muro alto, cimentado. Duas idosas, as irmãs: Maria Rita e Maria José, idades não informadas, que têm problemas psiquiátricos, como se tivessem algum conhecimento técnico de engenharia, escavaram com precisão durante 8 anos — usando apenas uma colher de pedreiro —, o terreno ao redor do próprio imóvel.
O trabalho árduo começava às 3h da manhã e durava até às 19h ou 20h, diariamente, sem folgas ou feriados. Todo o barro retirado do local era jogado em um campo de futebol próximo ou no terreno baldio de uma escola.
A atividade secreta e desconhecida pelos vizinhos até 2019 resultou na profundidade do terreno em aproximadamente dois metros em relação ao nível da rua — a sensação é de que a casa está dentro de uma piscina vazia. Ao ganhar repercussão na mídia, o caso fez mobilizar as autoridades locais e a família das idosas, que resolveu resgatá-las por uma escada, a única maneira de fazer com que elas saíssem do lugar.
Sábado ensolarado, 10h. A rua estava deserta, a reportagem do TAB chamou na casa ao lado e foi recebida por alguns vizinhos que abriram as portas dos seus lares para que pudéssemos fazer os registros fotográficos. Eles, em tom de indignação, foram logo mostrando as rachaduras nas paredes causadas pela escavação.
Dentre os imóveis, o lar das idosas se manteve fiel às antigas residências entregues pela Companhia de Habitação Popular de Alagoas (Cohab), nos anos 80, em Maceió. Os imóveis tinham por característica ser bem menores em comparação à área de extensão do quintal, o que fez com que os proprietários fossem mudando a sua estrutura ao passar dos anos. Poucas são as habitações que se mantêm fiel ao projeto original.
Dois anos depois da saída das idosas de sua residência, as fortes chuvas e a instabilidade da fundação fizeram com que uma parte da parede da residência desabasse. Com as escavações, o muro está solto e pode cair a qualquer momento — o terreno tomado pelo mato e os restos dos materiais da construção do imóvel no chão não conseguem ilustrar a organização e precisão do trabalho realizado pelas irmãs.
Por mais que a vizinhança se mostre solícita e disposta a falar a respeito do caso, há uma sensação de preocupação evidente. Durante a conversa, eles foram censurando alguns temas por receio à reação dos familiares que possam vir a ler nossa reportagem. O fato que provoca a curiosidade dos passantes é o mesmo que desperta angústia nos vizinhos que dividem muro a muro as suas casas com a fundação do terreno escavado: as rachaduras na parede, que vão se ampliando com o passar do tempo.
O imbróglio deixado pelo imóvel
O motorista Carlos da Silva Cavalcante, 56, vizinho das idosas há 30 anos, tinha um semblante preocupado. Sem conversar muito, foi logo mostrando as rachaduras da sua casa. Com uma fala rápida e baixa, ele disse que a escavação também está afetando a casa da outra vizinha, e desabafa que já apareceram de políticos a algumas pessoas prometendo ajudar colocando uma caçamba de terreno no local — mas longa é a espera por uma solução. "Vai terminar essa casa cair e a gente ficar na rua."
Cavalcante relata que chegou a presenciar as irmãs passando com sacolas plásticas cheias de barro no passado. Mas não tinha noção do que realmente estava acontecendo porque elas sempre ficavam trancadas em casa. Ele relata que o caso deixa quem passa próximo à casa curioso ao ponto de fazer um buraco no muro para ficar observando o terreno com cratera.
Um homem alto, trajando bermuda e sem camisa também conversou com a reportagem. Trata-se do taxista Ricardo, 55, que preferiu não ser fotografado. Ele disse ao TAB que a neta de uma das idosas morava na casa até não aguentar mais subir e descer escadas para ter acesso à rua. Além de afirmar que com as chuvas, há o risco do poste cair. Bastante irritado, falando alto, questionava: "Se chover dois dias, podem vir aqui para ver se não fica uma piscina. Até peixe dá para criar".
Ele relatou que a casa prejudicada é da sua sogra, por isso não briga para resolver o problema de maneira mais incisiva. Confessa ainda que o filho de uma das idosas é seu amigo e, para não contrariá-lo, prefere não cobrar providências. "Se fosse minha, eu brigava pelo pé".
A "obra" das irmãs o deixa nervoso e, ao mesmo tempo, lhe tira um sorriso do rosto. Às gargalhadas, ele compara o feito das idosas com o estádio Rei Pelé, mas só que dentro de um buraco. O estádio, popularmente conhecido como Trapichão, abriga as partidas do futebol alagoano e da série B do campeonato brasileiro, em Maceió. Ainda há espaço para elogio, ao comparar a escavação com o trabalho de uma construtora. Pequenos reparos para conter as rachaduras
Ao entrar na residência, a dona de casa Cícera da Silva, 53, mostra logo as rachaduras causadas pela casa vizinha. Nos últimos dois anos, a parede estampa fissuras e pequenos reparos feitos para conter o avanço dos transtornos causados pela escavação. Mesmo com os problemas de saúde somados ao perigo de sua residência desabar, ela não perde a simpatia. A cada dez palavras, a dona de casa de vestido estampado abre um sorriso.
Cícera revela que tirou umas fotos quando as rachaduras apareceram em sua parede, mas há algumas semanas acabou rasgando por não ver o problema ser solucionado. A dona de casa -- que mora na região há 25 anos -- divide o seu lar com o esposo e a filha Keila, 31, e tem mais outro filho, Bernardo, 33. Ao relembrar das vizinhas, recorda que alertou sobre o perigo que poderia prejudicá-la. Ao ser indagada, uma das irmãs esbravejou: "deixe eu fazer o meu trabalho, eu estou fazendo o trabalho de Deus".
Recordando o caso, diz ficar espantada até hoje com a empreitada das idosas. A vizinha contou que elas costumavam também colocar água com sal todos os dias no muro, até ele ficar um pouco mais mole.
Bastante irritada, Cícera contou ter gasto uma quantia em dinheiro há um tempo, quando as rachaduras começaram a aparecer no seu imóvel. E diz que precisa administrar as dores causadas por um AVC que paralisou parte do seu corpo há alguns anos, com a preocupação de ver sua casa ser engolida pela cratera. E ainda destaca que os vizinhos começaram a desconfiar da atividade das idosas no passado, por conta da movimentação estranha, mas ninguém poderia fazer nada já que as proprietárias da casa não permitiam.
Consequências da escavação
Para entender os problemas relatados pelos vizinhos e como eles podem afetar as suas residências, o TAB procurou o engenheiro, especialista em estruturas de concreto e fundações, Alcyr J. M. Vergetti Filho. Ele explica que o risco de desabamento se agrava porque o solo não tem nenhum tipo de contenção lateral, além de estar escavado e exposto às chuvas, o que pode contribuir para acontecer a erosão.
Para resolver o risco, seria necessário construir um muro de contenção no perímetro até o nível da residência e, depois, aterrar toda a área atingida. A situação atual do terreno pode acarretar desde problemas mais simples como pequenas trincas e fissuras devido à movimentação do solo até transtornos mais complexos; promover a ruína de alguma edificação vizinha.
Desfecho
Enquanto explicavam sobre os danos causados pelo imóvel ao lado, os vizinhos afirmaram que as duas idosas estão bem, e no momento moram na casa de um dos filhos.
A Defesa Civil de Maceió realizou vistorias no local em abril de 2018 e, à época, recomendou que as moradoras interrompessem a escavação do terreno por oferecer risco ao imóvel, a elas e aos imóveis dos vizinhos.
O órgão municipal explicou que, em julho de 2019, a Diretoria Social da Defesa Civil de Maceió encaminhou o caso à Secretaria Municipal de Assistência Social, mas a neta de uma das moradoras informou que elas se mudariam para a casa de parentes. A instituição recomendou que o terreno fosse aterrado pelos proprietários.