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As empresas de tecnologia vendem soluções para problemas que elas mesmas criaram e tendem a promover uma espécie de "merdificação" da vida contemporânea. Essa foi a tônica da mesa "Dormindo com o Inimigo", que reuniu o americano Danny Caine e o belga Mark Coeckelbergh no início da noite desta quinta-feira na Flip. De acordo com os autores, as big techs se beneficiam do cansaço e da ansiedade que o uso excessivo de suas tecnologias gera nas pessoas.
"Isso vale para Amazon, Google, Facebook, Apple e tantas outras", afirmou Caine, poeta e dono de uma livraria no interior dos EUA que inspirou o seu livro "Como Resistir à Amazon e Por Quê", lançado no Brasil pela editora Elefante.
"Minha ansiedade resulta muitas vezes de rolar o meu feed eternamente, sem nunca chegar ao fim das notícias, posts e comentários", disse ele, para quem essa dinâmica faz com que a realidade objetiva não importe tanto quanto a economia da atenção direcionada pelas pessoas para os meios digitais.
O belga Coeckelbergh, autor de "A Ética na Inteligência Artificial", lançado no Brasil pela editora Ubu, argumentou que muitas tecnologias desenvolvidas pelas big tech geram ansiedade ao mesmo tempo em que prometem tornar nossas vidas mais simples, o que diz não ser necessariamente verdade.
"O e-mail é um exemplo simples. Ele é mais fácil e rápido do que mandar uma carta, mas favoreceu a circulação de uma quantidade enorme de mensagens, o que criou novas demandas e fez com que o tempo passasse mais rápido", afirma ele, que é professor de filosofia da mídia e tecnologia da Universidade de Viena, na Áustria.
"Há outras tecnologias que exploram as nossas inseguranças e vulnerabilidades ao mesmo tempo em que existe uma indústria de livros, cursos e workshops que oferecem versões comercializáveis de autoaperfeiçoamento."
A mesa foi mediada pela jornalista Fabiana Moraes, professora da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e autora do livro "Ter Medo de Quê?" (Arquipélago), a ser lançado durante a Flip.
Caine e Coeckelbergh exploraram a questão do uso de dados para sugestões de produtos em sites do conglomerado de empresas do bilionário Jeff Bezos e dos danos do comércio digital ao mercado de livros.
"Bezos não está interessado em vender livros, comercializados na Amazon a preço tão baixo que impossibilita a concorrência. Ele quer usar a venda de livros para coletar dados que permitirão a suas empresas colocarem iscas para você pela internet e oferecerem outros produtos mais lucrativos", apontou Caine.
Para ele, o dano maior desse processo ao mercado editorial é o da própria desvalorização do livro. "Se um livro é vendido pela metade do preço na Amazon, porque Bezos não precisa ganhar dinheiro eles, as pessoas começam a achar que esses livros valem a metade de seus preços, quando se trata de um trabalho de anos, que envolve o escritor, claro, mas uma série de outros profissionais, dentro e fora das editoras, que precisam ser remunerados", argumentou.
Esses outros produtos sugeridos pelo site por meio de algoritmos é o que Coeckelbergh chamou de paternalismo libertário. "Esse tipo de incentivo que a Amazon por meio de recomendações, de certa forma, acaba minando a sua autonomia porque você fica com a impressão de que tem liberdade e autonomia de escolha, mas está sendo influenciado e manipulado nesta direção."
No campo da autoria, Coeckelbergh evoca a inteligência artificial (IA) para citar outro dano colateral de novas tecnologias ao mercado de livros. "Há modelos de linguagem ampliados que são capazes de escrever resenhas de livros baseadas no trabalho de autoras e autores que não estão sendo remunerados por isso", explicou.
"Não existe transparência do sistema sobre suas fontes. Não se pode rastrear quais textos foram usados e quem são os autores originais. Com isso, ficamos num circuito fechado em que todo material se torna igual e, quando utilizado repetidamente, fica cada vez mais difícil surgirem novas ideias. Como manter a criatividade viva neste contexto?", questionou o belga.
Este é um dos aspectos do que Caine chamou de "merdificação" da vida, parafraseando o escritor canadense Cory Doctorow, que cunhou o termo em inglês, "inshittification".
"Trata-se de um grande modelo linguístico que não pode produzir uma ideia nova porque se alimenta de tudo o que já existe. As big tech estão diminuindo a qualidade das coisas."
"Podemos influenciar o desenvolvimento de novas tecnologias que possam apoiar a democracia e as mudanças sociais. As inteligências artificiais não têm um destino pré-determinado, como as big tech querem que a gente acredite e simplesmente aceite. Um mercado de tecnologia mais democrático seria muito melhor do que o apoio às iniciativas de meia dúzia de bilionários."