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Comportamento
02/11/2020 07:36:00
Como Brasil deixou de ser um dos campeões em liberdade na internet e se tornou 'parcialmente livre'
Relatório 'Freedom on the net' posiciona Brasil em 21º lugar entre os 65 países analisados; topo do ranking de 2020 é ocupado pela Islândia

Época/PCS

A internet se tornou menos livre no Brasil nos últimos meses. O país, que já esteve no "top 5" da liberdade online, hoje é considerado apenas "parcialmente livre" na rede mundial de computadores.

As conclusões são da edição de 2020 do relatório Freedom on the Net (ou "Liberdade na Rede", em tradução livre). Trata-se de um estudo publicado anualmente pela organização Freedom House, sediada em Washington, DC (EUA).

Desde 2009, o relatório da Freedom House atribui notas aos países com base no quão livres são seus cidadãos para se comunicar via internet.

A medição é feita por meio de um longo questionário, respondido por um grupo de especialistas no assunto em cada país.

Em relação a 2019, o Brasil caiu um ponto na nota — de 64 pontos para 63.

Na edição deste ano, o Brasil está em 21º lugar entre os 65 países analisados pelo relatório. O topo do ranking de 2020 é ocupado pela Islândia, seguida pela Estônia.

A queda não é novidade para o país, que está perdendo posições desde o começo da medição, em 2009.

Naquele ano, o país ficou em 4º lugar no ranking dos gozavam de mais liberdade online. Ficou atrás apenas de Estônia, Reino Unido e África do Sul.

Mesmo em declínio, o Brasil manteve o status de país "livre" na internet até 2015 — no levantamento de 2016, passou a ser considerado apenas "parcialmente livre" pelo relatório.

'Fake news' e o projeto no Senado

O Brasil possui hoje uma das legislações digitais mais completas e avançadas do mundo — mas, na visão da Freedom House, os direitos do internauta brasileiro são hoje ameaçados pela proliferação de informações falsas na rede e por iniciativas legislativas consideradas equivocadas, como o chamado "PL das Fake News".

Além disso, a liberdade online no país também é afetada por limitações de infraestrutura — embora 75% dos domicílios no país tenham acesso à internet, esse percentual ainda é menor que o de outros países da região, como o Chile e a Argentina.

"O que nós vimos este ano, e que foi uma causa particular de preocupação, foi o envolvimento do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), e de pessoas próximas ao governo, na disseminação de desinformação online", diz Amy Slipowitz, que é gerente de pesquisas da Freedom House e cobre a América Latina para a instituição.

"Outro área (em que o país declinou) é que jornalistas que trabalham no meio digital continuam sofrendo violência e ataques por causa do trabalho. Só durante o período coberto por este relatório (junho de 2019 a maio de 2020), dois profissionais que faziam jornalismo local na internet foram mortos a tiros", diz Amy à BBC News Brasil.

"Então, estas são algumas das razões para o Brasil ter sido classificado como 'parcialmente livre' no relatório deste ano", diz ela.

Slipowitz diz ainda que os usuários de internet no Brasil e a sociedade civil do país devem estar atentos a propostas legislativas que podem restringir a liberdade de expressão — na visão da organização, seria o caso do chamado "PL das Fake News", que foi aprovado pelo Senado em junho deste ano. O texto tinha como objetivo coibir a disseminação de boatos online, e aguarda agora deliberação na Câmara.

"No Brasil, o Senado aprovou um projeto de lei (o das Fake News) que é particularmente problemático, e perigoso para a liberdade na internet. Então, seria importante que os internautas e a sociedade civil se mantivessem atentos e trabalhassem contra este projeto", diz Slipowitz.

"Se aprovado, ele pode criminalizar certos tipos de conteúdo; pode criar pré-requisitos de identificação de usuários de redes sociais e outras plataformas; e pode obrigar aplicativos (como o WhatsApp) a manter cópias das mensagens enviadas", diz a pesquisadora da Freedom House.

A visão, no entanto, não é unânime entre os pesquisadores que estudam a regulamentação da internet no Brasil.

Pablo Ortellado é professor do curso de gestão de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da mesma universidade.

Segundo ele, o relatório da Freedom House é minucioso e está bem fundamentado, mas possui um viés liberal — o relatório defende de que a liberdade de expressão online se sobrepõe a outros direitos humanos, como o direito ao esquecimento.

"Há (no relatório) uma visão unilateral em defesa da liberdade de expressão e da privacidade, sobretudo quando ela conflita com outros direitos", diz Ortellado.

"O direito ao esquecimento, quando bem implementado, é parte do direito ao desenvolvimento da personalidade. É um direito humano. Direito ao esquecimento, quando bem implementado, significa a desindexação das plataformas. Então, num mecanismo de busca, eu não vou mais encontrar resultados sobre um crime que eu cometi, depois que a sentença foi cumprida", explica ele.

"Por que? Para permitir que eu possa desenvolver minha personalidade. Reconstruir minha vida e seguir me desenvolvendo sem estar amarrado", diz. "Mas no relatório eles tratam isso como se fosse um impedimento à liberdade de expressão", diz Ortellado.

O pesquisador também discorda da caracterização feita sobre o PL das Fake News.

Em sua última versão, diz Ortellado, o projeto de lei superou os principais problemas, embora ainda tenha imprecisões pontuais.

"O PL teve muitas versões. Mas o PL que foi aprovado não é ruim. Ele tem problemas de implementação e de definições aqui e ali. Mas não é uma ameaça à liberdade na internet, de forma alguma, ao meu ver", diz Ortellado.

O professor da USP defende medidas que estão presentes no projeto de lei, como a possibilidade de identificar a origem de mensagens virais em aplicativos como o WhatsApp.

No mundo, liberdade na internet cai pelo 10º ano seguido

Em termos globais, este é o décimo ano seguido de recuo na liberdade online conforme o relatório da Freedom House.

O think-tank destaca três fatores que contribuíram para piorar a situação ao redor do mundo.

Primeiro, vários governantes ao redor do mundo passaram a usar a pandemia como um pretexto para limitar o acesso à informação. Depois, tecnologias que antes eram vistas como excessivamente intrusivas passaram a ser usadas para controlar o movimento da população durante a pandemia. Por fim, vários países aumentaram os controles sobre o fluxo de dados com o restante do mundo, num processo de "fragmentação" da internet.

"Este é o décimo ano seguido em que vemos um declínio da liberdade online. Então, é uma tendência que não se deve exclusivamente à pandemia", diz Amy Slipowitz.

"Dito isso, a pandemia (do novo coronavírus) de fato teve um papel importante em muitos dos países onde esse declínio aconteceu. Atores estatais em muitos países aproveitaram 'oportunidades' criadas pela pandemia para controlar a narrativa na internet, para censurar vozes críticas e para implementar novas ferramentas tecnológicas de controle", diz Slipowitz à BBC News Brasil.

"(Alguns governos) usaram a pandemia como um pretexto para expandir a vigilância e a coleta de dados dos cidadãos. Também houve uma expansão rápida de mecanismos de biometria e de inteligência artificial para lidar com a crise de saúde pública. E isso criou novos riscos para a democracia e para os direitos humanos", diz ela.

"Ao mesmo tempo, alguns líderes políticos usaram a pandemia como desculpa para censurar notícias desfavoráveis e para prender críticos; também usaram minorias étnicas e religiosas como 'bodes expiatórios' para os problemas", diz Slipowitz.