Gazeta do Povo/PCS
As imagens em vídeo de uma policial militar atirando em um assaltante de 21 anos explodiram como pólvora nas redes sociais. Entre as reações ao vídeo, muitos parabenizaram a policial pela reação e muitos outros comemoravam a morte do ladrão. “Menos um vagabundo no mundo”, viu-se em mais de um comentário.
No fogo cruzado de opiniões sobre o caso, também houve comentários com críticas à reação da policial, que, de fato, agiu de acordo com o treinamento recebido da sua corporação, e possivelmente evitou uma tragédia maior, envolvendo as crianças e suas mães que chegavam à escola.
Mas, via de regra, o tom foi de comemoração. Cabe a pergunta: Por que a sociedade brasileira tem reagido dessa forma a casos como esse?
Uma das causas que podem explicar por que tanta gente celebrou a perda de uma vida humana são os altos índices de violência no país. O Brasil registra 30,5 mortes por homicídio para cada 100 mil habitantes, segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em maio de 2017, com dados de 2015.
A taxa de assassinatos no Brasil é pior do que a de países como Haiti (28,1 homicídios a cada 100 mil habitantes) – um país afetado pela pobreza e que ainda se recupera da devastação de um terremoto que deixou 1,5 milhão de pessoas desabrigadas em 2010 – e México (19), que sofre com a violência gerada pelo tráfico de drogas.
Para comparação, o país com a menor taxa de assassinatos nas Américas é o Canadá, com 1,8 homicídio para cada 100 mil habitantes. Outros países com baixas taxas no continente são Chile (4,6), Argentina (4,7), Cuba (4,9), Estados Unidos (5,3) e Uruguai (7,6).
A violência disseminada, que inclui casos de crueldade surpreendente, ajuda a explicar por que as pessoas muitas vezes se sentem aliviadas ao saber de casos em que um assaltante, ou mesmo um suspeito de crime, acaba morto.
No entanto, uma morte, de quem quer que seja, não deveria ser motivo de comemoração. Todo ser humano tem uma dignidade intrínseca e também deveria ter a chance de se redimir e procurar mudar o curso de sua vida para melhor.
Segundo o psicólogo Fernando da Silveira, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência e Vulnerabilidade Social da Universidade Mackenzie, essa situação precisa ser compreendida não do ponto de vista do indivíduo, mas das relações humanas mais amplas. "Na nossa cultura brasileira, uma parcela da população não está inscrita no campo do humano. Quando morre uma pessoa que está cometendo um assalto, não existe uma percepção de que é um ser humano que está morrendo", disse.
Problema complexo
Para Silveira, essa desumanização faz com que algumas pessoas acabem se comportando dessa maneira, cometendo atos bárbaros, assassinatos e ameaçando a população. "As pessoas só comemoram essa morte, mas não têm a percepção de que essa não é uma questão individual, mas um modo de funcionamento", disse.
Ele destaca que celebrar a morte de criminosos como se fosse uma 'limpeza' não seria justo. "Essa 'limpeza' está na base dos 60 mil assassinatos que acontecem por ano no Brasil. A fonte de produção desse lugar social de não inscritos na ordem de humano é perpétua, não cessa", opinou.
O cientista político Paulo de Tarso da Silva Santos, pesquisador da Unicamp, também acredita que a população tem dificuldade para perceber a totalidade e a complexidade do problema. Para ele, a crise estrutural por que passa o Brasil, somada a problemas de formação educacional e cultural, ajuda a fomentar essas reações. “Em um momento de crise, temos diversas formas de reação. Um grande problema, no meu entender, é que a sociedade e o senso comum não têm possibilidade de identificação de quais são os reais problemas, os reais inimigos”, disse Santos.
“É fácil explicar por que se comemora [a morte de um criminoso], o complexo é perceber que o problema é muito grave”, acrescentou o pesquisador.
Para Santos, o Brasil passa por uma crise institucional, política e econômica, o que leva a consequências também para a situação da criminalidade. Na opinião do pesquisador, quando o estado perde o controle, por exemplo, das estruturas carcerárias para organizações criminosas, isso configura uma violência mais grave que a população não conseguiria perceber.
Já os assaltos e crimes que afetam o cidadão são a violência que a população identifica, na opinião de Santos. “A reação do cidadão é a seguinte: ‘já não tenho nada, estou perdendo tudo, e vou aceitar esse tipo de coisa? Temos que matar mesmo’. Esse é um problema grave”, afirmou Santos.
É justo que se comemore que uma tragédia maior tenha sido evitada. Mas celebrar a morte de uma pessoa, por pior que seja o seu histórico, desumaniza e rebaixa a sociedade, a colocando no mesmo nível de ódio dos criminosos. “Essa é uma situação bárbara, não é uma coisa a se comemorar”, disse Silveira.