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Economia
02/06/2018 08:34:00
Desconto que o Brasil deu em juros de empréstimos para Cuba é ilegal, aponta TCU

UOL/PCS

O governo brasileiro concedeu descontos da ordem de US$ 68,4 milhões (cerca de R$ 255,6 milhões) nos juros de empréstimos concedidos pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) a Cuba. O governo da ilha caribenha usou o dinheiro para construir o porto de Mariel, inaugurado em 2014, com a presença da então presidente Dilma Rousseff (PT). De acordo com o TCU (Tribunal de Contas da União), estes descontos foram ilegais em pelo menos quatro operações de crédito a partir de 2010 com o BNDES.

Para a realização do empréstimo, foi utilizado um mecanismo financeiro previsto pelo Tesouro Nacional chamado Proex-equalização, que permite baixar os juros de um empréstimo a um país estrangeiro por até dez anos (120 meses). O objetivo é conseguir competir com outros países que ofereçam condições mais vantajosas, e a União paga a diferença.

O governo brasileiro decidiu, porém, conceder o benefício por 25 anos (300 meses), o que, afirma o TCU, é ilegal segundo a legislação vigente. O órgão de controle também constatou que as condições oferecidas pelo BNDES não só foram iguais às disponíveis no mercado internacional naquele momento, mas sim ainda melhores.

Contatados pela reportagem, o BNDES e os ministérios envolvidos nestas negociações afirmam que colaboram com todas as auditorias e investigações (leia mais abaixo).

Se a regra vigente tivesse sido obedecida, o desconto máximo possível nos juros dos empréstimos concedidos a Cuba seria de US$ 54,629 milhões no total --ou cerca de R$ 204 milhões. Com o aumento de prazo, o desconto concedido passou para US$ 123,11 milhões. A diferença (US$ 68,4 milhões) é o valor que foi considerado ilegal pelo TCU.

A avaliação faz parte de uma auditoria sigilosa, à qual o UOL teve acesso, que o TCU está realizando em todos os negócios do BNDES com empresas envolvidas na Operação Lava Jato.

"Este valor preliminar corresponde a um aumento nos dispêndios com equalização em 125% em relação ao valor que seria gasto caso as operações tivessem seguido as condições regulamentares, uma vez que as aprovações propiciaram a ampliação do benefício da equalização por 15 anos acima do limite máximo legalmente permitido", afirma o relatório do tribunal de contas.

Os empréstimos do BNDES a Cuba começaram em 2009, no segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (de 2007 a 2010), e continuaram no primeiro mandado de sua sucessora, Dilma Rousseff (de 2011 a 2014).

BNDES emprestou US$ 682 milhões para construir porto de Mariel

Os então presidentes de Cuba e Brasil, respectivamente Raúl Castro (à esq.) e Luiz Inácio Lula da Silva, visitam o porto de Mariel, em Cuba

Ao todo, o BNDES emprestou US$ 682 milhões, ou R$ 2,55 bilhões, para a construção do porto de Mariel e de projetos de infraestrutura no entorno, como uma rodovia que leva até o local. As obras foram feitas pela construtora brasileira Odebrecht. A empreiteira diz que colabora com a Justiça do Brasil e dos países onde atua (leia mais abaixo).

Os órgãos diretamente responsáveis pelas irregularidades apontadas pelo TCU são a Camex (Câmara de Comércio Exterior), que reúne representantes dos ministérios da Fazenda e das Relações Exteriores, entre outros, para formular a política de comércio internacional do Brasil, e o Cofig (Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações), responsável por gerir o fundo da União que garante os empréstimos.

Em março de 2017, a Folha mostrou que o governo brasileiro assumiu riscos altos ao apoiar os negócios da Odebrecht em Cuba. Na visão do governo Lula, o processo de abertura econômica em Cuba criava oportunidades para as empresas brasileiras e a queda do embargo comercial imposto pelos EUA era questão de tempo, tornando necessário que elas se posicionassem antes de rivais de outros países.

Hoje, mais de quatro anos após a inauguração, a Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel caminha a passos lentos e encontra dificuldade de atrair empresas. Até agora, apenas duas empresas brasileiras estão instaladas no local. A burocracia afugenta os investidores. De acordo com o governo cubano, US$ 1,2 bilhão (R$ 4,5 bilhões) foi investido em Mariel até agora.

Venezuela deu calote

Nesta semana, o UOL mostrou que o governo brasileiro fez outras manobras financeiras irregulares para dar um desconto de R$ 735 milhões no valor pago pelo seguro de empréstimos a países da América Latina, África e Caribe. No início de maio, foi revelado que a exposição total do fundo que garante estes empréstimos é de R$ 64 bilhões.

Em março, o UOL já havia mostrado que a Venezuela deu um calote de quase R$ 1 bilhão em empréstimos, tomados juntos ao BNDES e ao Credit Suisse, e que o governo brasileiro assumiria a dívida com recursos do FGE (Fundo de Garantia à Exportação).

Após o calote, a Câmara dos Deputados teve que aprovar de maneira emergencial um manejo de recursos do Orçamento da União para cobrir esse prejuízo e outro referente a um calote de Moçambique (ocorrido no ano passado), com recursos do seguro-desemprego. Depois do calote, o governo federal alterou as regras para a concessão do seguro.

O UOL procurou Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2010, no governo Lula, para comentar quais eram os objetivos do Brasil com a política de empréstimos a outros países naquela época. "Era um objetivo do governo aproximar o Brasil dos países africanos e latino-americanos", afirmou Amorim.

"Não era uma questão ideológica, era política. Avaliamos que o país tinha muito a ganhar aumentando a presença nestes países, dentro da geopolítica mundial. A aproximação econômica, concessão de empréstimos, era só uma das frentes de atuação", disse o ex-ministro.

Analista vê ingenuidade

Gustavo Fernandes, professor do mestrado de gestão e políticas públicas da FGV (Fundação Getúlio Vargas), criticou este investimento específico. "No caso do porto de Mariel, acredito que era muita ingenuidade investir lá", afirma.

"Mesmo que a abertura econômica acontecesse na ilha, eles ficam a cerca de 100 km de distância dos Estados Unidos. Quem você sinceramente acha que seria o principal parceiro comercial da ilha, os EUA ou o Brasil?", questiona Fernandes.

"Não teríamos a menor condição de competir com eles, construímos um porto para os cubanos e os americanos usarem. Sem falar que a queda do embargo e a tal abertura econômica não vieram até hoje, logo não tem muito o que fazer por lá com aquele porto."

Ministério da Fazenda e BNDES dizem que colaboram

O Ministério da Fazenda, por meio de sua assessoria de imprensa, afirma que está prestando todas as informações solicitadas pelo órgão de controle para auxiliar as análises das equipes de auditoria.

"Até o momento, a única determinação recebida do TCU foi a elaboração, com o auxílio da ABGF (Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias), de estudos referentes à sustentabilidade atuarial do FGE", diz a nota enviada ao UOL.

De acordo com a Fazenda, apenas após este estudo será possível dizer se as práticas apontadas pelo TCU comprometem ou não suas finanças. O ministério destaca também que o aperfeiçoamento dos mecanismos do FGE é um objetivo comum com os órgãos de controle.

O BNDES, também por meio de sua assessoria de imprensa, informa que está atendendo a todas as requisições e prazos do TCU e que colabora totalmente com a realização das auditorias sobre as operações de crédito em questão. O banco público afirma que até o momento não há parcelas em atraso por parte do governo cubano.

Procurado pela reportagem, por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços não respondeu até a publicação desta reportagem. O UOL também procurou representantes do consulado de Cuba em São Paulo, por email e telefone, mas não conseguiu resposta.

Investigação continua na Lava Jato

O TCU abriu em maio processos administrativos para apurar responsabilidades individuais de servidores públicos nas ilegalidades encontradas na auditoria. Os achados também foram enviados para o MPF (Ministério Público Federal) e à PF (Polícia Federal) para serem incluídos nas investigações da Operação Lava Jato.

O principal processo na Justiça que envolve este caso é a denúncia por corrupção passiva e ativa da PGR (Procuradoria-Geral da República) contra o ex-presidente Lula, a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), os ex-ministros dos governos do PT Antônio Palocci e Paulo Bernardo e o empresário Marcelo Odebrecht. Os políticos são acusados de receber US$ 40 milhões de propina da empreiteira.

De acordo com a denúncia, apresentada no final de abril, executivos da Odebrecht contaram em delação premiada que prometeram a propina ao PT em troca de a empreiteira ser beneficiada em contratos e decisões do governo, incluindo nos empréstimos para outros países que contratassem os serviços da Odebrecht.

Em nota, a construtora afirma que "está colaborando com a Justiça no Brasil e nos países em que atua". De acordo com a assessoria de imprensa, a Odebrecht assinou acordo de leniência com as autoridades de Brasil, Estados Unidos, Suíça, República Dominicana, Equador, Panamá e Guatemala.

"[A Odebrecht] implantou um sistema para prevenir, detectar e punir desvios ou crimes. E adotou modelo de gestão que valoriza não só a produtividade e a eficiência, mas também a ética, a integridade e a transparência", diz a nota.