CGNews/PCS
No dia em que a filha teria alta, os pais foram vê-la no cemitério. A criança de 8 anos que morreu e virou notícia por ter entrado na conta da covid pela Secretaria Municipal de Saúde de Sidrolândia tinha insuficiência renal e fazia hemodiálise. O que a levou para o hospital, segundo a família, foi uma bactéria no cateter. A criança não estava internada por conta da covid-19 nem chegou a usar respiradores.
Por telefone, o pai Flávio Ortiz Almeida, de 43 anos, conta como foram os últimos dias. "Até difícil a gente comentar isso agora, a gente está indignado porque falaram nas redes sociais que ela estava no respirador", desabafa.
Operador de maquinário agrícola, o pai conta que a caçula de cinco filhos já nasceu com doença renal crônica e chegou a ficar os 5 primeiros meses de vida internada na CTI da Santa Casa. A pedido da família, o Campo Grande News não vai dar o nome da criança nem as fotos.
Dois sábados atrás, dia 24 de outubro, a menininha saiu da clínica Pró-Renal onde fazia hemodiálise três vezes na semana com tremedeira e febre para o HU, hospital onde acompanhava o tratamento renal.
"Ela chegou lá no quartinho que tinha televisão, ela e minha esposa, para tomar medicamento, porque o antibiótico pela boca não estava fazendo efeito e a bactéria estava no cateter", relata o pai. "Ela nunca usou respirador, ela entrou lá para combater essa bactéria. É até uma falta de respeito com a minha filha", enfatiza.
A criança ficou internada e, segundo a família, dividia quarto com outras crianças, quando na quinta-feira da semana retrasada (29), fizeram o teste da covid depois que ela começou a tossir. "Começou uma tossezinha, mas o ar estava muito forte no quarto, estava muito gelado. Aí resolveram fazer o teste lá e deu positivo, mas ela não apresentou nada de sintomas, nada. Os médicos até iam lá dar parabéns para ela. O problema que ela tinha era renal", explica.
Na segunda-feira (2), a criança entrou para fazer a cirurgia e retirar o cateter. No mesmo dia, o pai fala que ela seguiu tomando os antibióticos, sem o cateter. "Na quarta-feira, resolveram fazer a cirurgia para colocar o cateter e ela fazer a hemodiálise na quinta, para ver se estava tudo bem", comenta Flávio.
A cirurgia foi na quarta-feira (4), e começou por volta das 14h. "Eu estava conversando com ela, fiz chamada de vídeo, ela me ligou pedindo coisas porque a gente estava se programando o que ia fazer na alta", recorda.
Foram feitas duas chamadas de vídeo até o pai chegar de Sidrolândia em Campo Grande e estacionar o carro em frente ao HU. "Eu entrei lá dentro, ela passou por mim, deu tchauzinho, jogou beijo... A gente fica chateado pela condição que falaram, a guria estava boa, entrou lá e deu parada cardíaca", descreve.
A família ouviu dos médicos que no pós-operatório, depois de colocado o cateter, a filha teve duas paradas cardíacas. "Tentaram ressuscitar, na primeira ela voltou, deu a segunda e não conseguiram mais. Foi depois da cirurgia, ela já estava se recuperando, tinha posicionado o cateter no lugar, não deu erro nenhum. Os médicos alegaram que pode ser por causa da infecção, o coraçãozinho dela não resistiu".
Por volta das 17h, a família soube da morte. "Tanta coisa que a gente fica pensando, fica indignado, sabe? A gente vive numa sociedade e assim, a gente não tem dinheiro. Eu mesmo até respondi algumas coisas, mas nada vai trazer minha filha".
Sobre a criança, o pai não precisou ser questionado para descrever a menina. "Minha filha, se você chegar em Sidrolândia, quem a conheceu dá graças a Deus por ter conhecido". A frase sai com a voz já embargada, o pai cede à emoção e chora.
"Ela era uma guria alegre. Você não via tristeza nela. Se você ligar na clínica, pergunta: - quem foi a minha filha? A guriazinha de Sidrolândia que fazia tratamento lá, que vão te dizer, ela era tudo", declara.
Feliz, a menina pensava antes de falar e não era das crianças que vivia no celular. Na memória do pai está a cena da criança ativa, que não parava, brincava o tempo todo. "Ela estava sempre tentando fazer o melhor para os outros. Você não via ela triste, não. Era sempre sorrindo, sempre tentando alegrar a gente que conviveu com ela".
Desde quando a caçula nasceu, os pais sabiam dos problemas de saúde que a menininha enfrentaria. Até os procedimentos feitos ao longo dos anos, Flávio relata. Por sete anos, ela usou fraldas, fez cirurgias, retirou rim e passou a fazer hemodiálise em 2020.
"O que falaram na mídia, não tem nada disso. A gente estava o tempo todo com ela, minha esposa junto. Foi uma parada respiratória por causa da infecção. Ela estava boa, brincando", repete.
A família nunca imaginou que ela não resistiria à internação. "Toda cirurgia tem risco, mas não pensávamos nada disso, tudo o que a gente queria era sair, já estávamos na expectativa, a alta era para ser hoje", afirma Flávio.
No atestado de óbito, o pai explica que está escrito parada cardíaca e lá embaixo a covid, porque ela apresentou positivo para o exame. "Mas a causa da morte está como parada, a guria estava melhor que eu, respirando melhor que eu. Quando começou essa doença, a gente tentou blindar ela. Ela não saía de casa, fazia hemodiálise voltava e limpava tudo, não ia pra casa de vó, pra casa de ninguém. Eu ia ao mercado, chegava e já limpava tudo antes de entrar. Não sei como foi aparecer esse covid nela, minha esposa não deu, quem estava no quarto com ela não deu", questiona.
O pai faz questão de dizer que a família sempre foi muito presente desde o nascimento da caçula.
**"Eu e minha esposa sempre corremos atrás de tudo, fomos, fizemos tudo. Ela deu entrada no hospital para tomar um medicamento. Acabamos de voltar, fomos no cemitério visitar, porque hoje era o dia dela sair".**
O caso foi divulgado como sendo óbito de covid-19 pela Secretaria Municipal de Sidrolândia que contabiliza a morte da criança como a 30ª da doença no munício. O boletim divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde deste sábado (7), não traz o óbito da menina nem nenhum outro. Alegando falha no sistema federal, a Secretaria diz que não houve atualização na base de dados oficial do Ministério da Saúde.