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Enquanto congressistas buscam penas mais severas para o aborto após 22 semanas de gestação, inclusive em caso de estupro (hoje permitido pelo Código Penal), o maior processo criminal sobre aborto no Brasil, registrado em Campo Grande, vem do passado para lembrar que a prática é realidade para milhares de mulheres. Mas também na clandestinidade, a situação é regulada pelo poderio financeiro.
Quem tinha dinheiro ficava em suíte com dois ambientes e cuidados de enfermeira. Já a mais pobre levava injeção abortiva veterinária na veia e era despachada para a casa. Esse retrato claro do Brasil, que vigora 15 anos depois, consta na investigação sobre o Caso da Clínica de Planejamento Neide Mota Machado. Os principais motivos dos abortos: esconder infidelidade ou mulheres solteiras, temerosas da repressão familiar.
Em 10 de abril de 2007, reportagem da TV Morena mostrou que clínica de planejamento familiar de Campo Grande era local especializado em aborto ilegal, confirmando o que circulava há décadas na boca do povo. Na sequência, a Polícia Civil fez apreensões de arquivos com 9.986 nomes de mulheres que passaram pelo local em 20 anos.
“Ela tinha fonte de renda na alta sociedade, mas não deixava também de garimpar a patuleia, entre aspas, que batia implorando por um procedimento sem ter condições de pagar. Dessa patuleia, ela arrancava a rapa do tacho, mas para esses ela dava remédio de aborto veterinário e mandava embora. Se der ruim, você chama o Samu”, afirma o promotor Douglas Odelgardo Cavalheiro dos Santos, que atuou no caso.
Dos episódios levados ao plenário do Tribunal do Júri de Campo Grande em 2010, quando ex-funcionárias da clínica foram condenadas, o promotor rememora o da paciente que recebeu abortivo para porcas.
“Eu lembro de ter narrado o caso de uma menina que chegou lá desesperada. Mas quando passaram o orçamento, estava totalmente fora do seu alcance. Ela entrou em desespero, falou pelo amor de Deus, já tive uma amiga que tentou sozinha e quase morreu. Não quero tentar sozinha, tenho medo de morrer. Viraram para ela, bem na lata mesmo, e perguntaram quanto tinha no bolso”, relata o representante do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul).
Depois, a jovem foi questionada sobre o quanto tinha no banco. Naquela época, não existia aplicativos bancários. Então, a mulher caminhou três quadras até a agência e voltou a clínica com o extrato. Ela sacou o dinheiro e juntou com que tinha no bolso.
Não passou pela psicóloga, não teve enfermeira para ela, não teve nada. Levaram para uma salinha, onde ela ficou sentada. Aí mandaram uma enfermeira aplicar injeção e disseram para ela ir para a casa, deitar e esperar”
Em caso de muitas dores e se o feto não saísse em duas horas, ela deveria chamar ambulância e ir para o hospital.
“Por incrível que pareça, até nesse caso, ela [Neide] tinha prontuário. E a medicação era veterinária. Era abortivo utilizado para suíno”.
O promotor destaca que todas as fichas tinham as fotos do procedimento e do feto. No quesito instalações, a clínica contava com duas suítes, compatíveis com a infraestrutura de hospitais particulares. Eram dois ambientes, um para a pessoa atendida e o outro para o acompanhante.
Em abril de 2010, a ex-funcionárias da clínica foram condenadas por aborto ilegal. A médica se suicidou antes do júri popular.