Globo Esporte/LD
ImprimirO machismo sempre existiu no meio do futebol. Às vezes velado, às vezes explícito. Conviver com isso é um desafio diário para nós, repórteres que escolhemos ignorar as barreiras impostas por esse ambiente. Chegar até a cobertura da Copa do Mundo talvez tenha sido o maior salto sobre essa barreira.
Após 12 dias de Rússia, porém, esse sentimento de orgulho se mistura com sensações ressentidas. Impotência, exposição, constrangimento. Encarar o chamado ''front'' na Copa do Mundo – que é a linha de frente da cobertura de treinos, jogos e coletivas – nos apresenta a certeza de que ainda há um enorme entrave para nós.
Somos duas mulheres jovens. Exercemos funções onde, nesta Copa do Mundo, estão amplamente dominadas - quase em totalidade - por homens. Em uma cobertura tão importante, onde os números de credenciais são restringidos por emissoras de todo o mundo, fica o sentimento de que, quando há limitação de pessoas, há perda de espaço para as mulheres.
Carregamos câmeras pesadas, tripés, laptops. Sentamos no chão, na rua, para enviar nossos materiais. Encaramos zonas mistas espremidas entre dezenas de homens - algumas vezes desrespeitosos e brutos (nesta Copa, um empurrão fez com que o gravador de uma de nós fosse isolado). Ouvimos gracinhas (algumas sequer entendemos) desconfortáveis de torcedores. Apesar de representadas em diversas funções na cobertura, inclusive de chefia, do Grupo Globo, o front ainda tem poucas de nós. Destaque também para nossas colegas produtoras Mariane Granado e Laura Fonseca, também na ruas e estádios da Rússia.
Por que a Copa de 2018 tem sido pior?
A Rússia é um país que ainda tem alguns preconceitos entranhados (leia-se uma lei que proíbe propaganda gay). O machismo muitas vezes fica mais evidente culturalmente do que no Brasil (onde a questão também é delicada). Para piorar, chama atenção de forma negativa a pouca representatividade vinda de todos os países.
Talvez essa pouca presença nos estádios do Mundial seja fator determinante para os olhares que tem nos causado imenso constrangimento nestes primeiros 12 dias de Rússia. É como se fôssemos um corpo estranho nas salas de imprensa, de coletiva, zonas mistas. Nosso reflexo quase espontâneo de olhar para o chão diante desses olhares diz muito. Olhar para baixo para não chamar ainda mais atenção. Uma loucura, né?
A abordagem nas ruas é um capítulo à parte e de imenso desconforto. Já estamos acostumadas/preparadas para situações desagradáveis com torcedores nos estádios que frequentamos no nosso dia a dia. Mas essa Copa do Mundo tem sido de longe o ambiente mais hostil.
Não é ''vale tudo'' na Copa
Um clima de ''vale tudo na Copa'' está na cabeça de muitos (não todos, claro) grupos de estrangeiros que viajaram até a Rússia. E as brincadeirinhas quase nunca tem graça. Uma das repórteres que escreve esse texto foi beijada por um torcedor uruguaio enquanto aguardava uma entrada ao vivo na porta do estádio. Os outros ficaram rindo. Mas, acredite, não teve a menor graça.
Alguns russos também não parecem tão acostumados com essa presença feminina. Ao andar muito sozinha,outra repórter que vos escreve teve que acelerar o passo mais de uma vez ao ser abordada por locais de forma incômoda. Isso mais de uma vez. Entre risadas e dedos apontado para sua credencial, pediu ajuda a um brasileiro que passava para seguir viagem.
Ser uma mulher, sozinha, brasileira, trabalhando, parece ser motivo de graça para muitos aqui. Há dois dias, no metrô, um grupo de cinco homens ficou apontando e rindo para uma de nós, ao ler na credencial que se tratava de uma profissional do Brasil. Se alguém souber o motivo disso ser engraçado, por favor, nos conte.
Mais representatividade, menos musas
O vídeo do grupo de brasileiros assediando a jovem russa no começo desta Copa é desolador. A repercussão, no entanto, foi um respiro. Saber que atualmente vivemos em um contexto onde isso não é mais tolerado, nos alivia.
A Copa do Mundo está apenas começando. Seguimos por aqui com o desejo por mais notícias que nos tragam ânimo e coragem para seguir em frente. Que nossa representatividade seja motivo de orgulho e reflexão - sem o desnecessário cardápio de musas do Mundial, por favor.
Ficamos com a inspiração poderosa das iranianas que quebraram barreiras nas arquibancadas nos últimos dias. Que o ato de liberdade delas nos inspire a nos sentirmos ainda mais livres onde quer que o futebol nos leve.