EL PAÍS/PCS
ImprimirMenos de dois meses após o esperado início da venda de maconha nas farmácias uruguaias, o processo de legalização mais ambicioso do mundo está cercado por uma absoluta incerteza, por conta da intervenção dos bancos internacionais, especialmente norte-americanos.
A demanda das duas variedades de cannabis distribuídas pelo Estado uruguaio estava em crescimento, assim como o registro de compradores, que superou as 13.000 pessoas. Um sucesso. E então chegou a notícia de que uma das farmácias de Montevidéu deixou de vender maconha após seu banco, o Santander, ameaçar encerrar sua conta. Pouco depois veio a público que outras entidades, como o Itaú cancelaram as contas das empresas privadas que têm a concessão da produção da maconha e de alguns clubes canábicos.
O estatal Banco República (BROU), parecia ter resolvido a situação, fornecendo seus serviços às 15 escassas farmácias envolvidas no processo, aos produtores e aos clubes. Mas pouco tempo depois veio a informação de que o Bank of America e o Citibank alertaram que deixariam de operar com o BROU se ele continuasse com esses serviços. De acordo com a legislação norte-americana, trabalhar com dinheiro proveniente da maconha é ilegal e atenta contra as medidas para controlar a lavagem de dinheiro e ações terroristas.
A diretoria do BROU anunciou então que fecharia as contas das farmácias que vendem maconha para não comprometer as operações em dólares. Os uruguaios gerenciam suas economias e as compras de bens importantes (eletrodomésticos, carros, apartamentos) em dólares, uma moeda tão utilizada que até podem sacá-la diretamente nos caixas automáticos. Assim, o BROU, um banco estatal, decidiu colocar a legislação norte-americana (adotada após os atentados de 11 de setembro) à frente de uma lei adotada pelo parlamento uruguaio autorizando a venda e produção de maconha.
Rapidamente, o problema legal se transformou em crise política. O ex-presidente José Mujica, artífice da legalização, se enfureceu e durante uma sessão do Senado acusou os bancos de atentarem contra a democracia. Mujica também criticou o presidente Tabaré Vázquez e seu gabinete, ameaçando bloquear os trabalhos do parlamento se uma solução não for encontrada. O partido do ex-guerrilheiro, o MPP, é o grupo mais numeroso no parlamento dentro de uma coalizão governista no Uruguai, a Frente Ampla.
Vázquez, que nunca viu com bons olhos a legalização, tentou acalmar as águas dentro de seu partido e anunciou que uma missão de alto escalão viajaria aos Estados Unidos para resolver a situação. Mas a iniciativa foi recebida com ceticismo, já que dentro dos Estados Unidos a questão da legalização da maconha está longe de ser resolvida. Os Estados que autorizam a venda de cannabis também esbarraram nas leis federais e precisaram recorrer ao pagamento unicamente em espécie ou conseguiram ajuda de pequenas entidades bancárias. A possibilidade de que uma delegação uruguaia consiga se reunir com a administração Trump para mudar as leis, algo que os políticos do Colorado e do Oregon não conseguem fazer, parece remota.
Então: estamos diante do fim da venda da maconha nas farmácias?
Como sempre, a realidade às vezes transcorre por seus próprios caminhos. Em meio à tempestade, cinco das seis farmácias de Montevidéu que vendem maconha continuam a fazê-lo, ainda que em alguns casos os proprietários anunciaram que podem acabar com as vendas. Como em um conto de Onetti, nas regiões do Interior a crise parece não existir e várias farmácias afirmaram ao EL PAÍS que trabalham normalmente.
De qualquer forma, o Governo estuda soluções que deveriam ter sido pensadas há três anos, quando a maconha foi legalizada. A equação não é fácil porque mesmo que se decida que as vendas sejam feitas em dinheiro (ou com criptomoedas) os bancos podem fechar as contas das farmácias por considerarem que as transações são ilegais.
Ninguém sabe como irá terminar esse capítulo da legalização que colocou o Uruguai frente à realidade da legislação internacional antidrogas.