O Globo/LD
ImprimirEm documento entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF), o Senado se posicionou contra a liberação do aborto para mulheres grávidas infectadas com o vírus zika. Segundo os advogados do Senado, permitir a interrupção da gestação nesses casos abre as portas para a eugenia, ou seja, uma seleção dos melhores indivíduos e o descarte dos que possuem características não desejadas. O documento também destaca que a legislação brasileira protege o direito à vida desde a concepção. O vírus está associado à epidemia de microcefalia, uma malformação em que os bebês nascem com a cabeça menor do que o normal.
A ação pedindo a liberação do aborto para gestantes com zika foi apresentada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) em 24 de agosto deste ano. A relatora no STF, a ministra Cármen Lúcia, liberou a ação para julgamento no plenário do tribunal, mas ainda não há data marcada para isso.
Atualmente, só é possível interromper a gravidez quando há estupro, risco de saúde à mãe ou anencefalia, ou seja, nos casos de fetos sem cérebro. O aborto em anencefalia só passou a ser permitido em 2012, quando o STF julgou uma ação liberando as mulheres com fetos nessa situação a recorrer à medida. Nesse caso, não há viabilidade do feto, ou seja, ele já nasce morto ou sobrevive por pouco tempo após deixar a barriga da mãe. Na microcefalia, embora seja comum o desenvolvimento de deficiências mentais, não há necessariamente morte da criança.
"A fixação desse marco – o da inviabilidade – resulta, assim, incompatível com o pedido formulado na presente ação, visto que os fetos com microcefalia são geralmente viáveis, embora possuam uma malformação que lhes causará transtornos em sua vida", diz trecho do documento, assinado pelo advogado-geral do Senado, Alberto Cascais, pelo advogado-geral Adjunto, Rômulo Gobbi do Amaral, pelo coordenador do Núcleo de Processos Judicais do Senador, Thomaz Gomma de Azevedo, e pelos advogados do Senado Hugo Souto Kalil, Edvaldo Fernandes da Silva, Fernando Cesar de Souza Cunha.
Em seu parecer, o Senado destaca que liberar o aborto nesses casos é caminho para a eugenia e seria, portanto, uma "involução civilizatória". "Em verdade, a autorização de aborto em função de malformação do embrião ou do feto, ainda que por razões declaradamente benevolentes, acaba por abrir portas para o aborto eugênico e para o controle preventivo de doenças por meio do aborto – problemas que já surgem em países com legislação mais liberal em relação ao aborto. Constitui-se a medida, portanto, em uma involução civilizatória", diz trecho do documento.
Os advogados do Senado citam inclusive uma pesquisa feita na Polinésia Francesa, onde houve surto de zika, para dizer que, em apenas 1% das grávidas com o vírus, os fetos tiveram microcefalia. "A se confirmar essa informação, portanto, presumidamente noventa e nove por cento dos fetos abortados segundo o pedido da associação autora seria saudável", diz trecho do documento, acrescentando que não há pesquisa parecida a essa no Brasil.
O Senado reconhece que o direito à vida não é absoluto, citando até um trecho pouco conhecido da Constituição, que autoriza pena de morte quando o país está em guerra. Mas, no caso dos fetos, conclui que "é induvidoso que o nascituro goza de especial proteção no ordenamento jurídico", citando inclusive tratados internacionais assinados pelo Brasil.
INTROMISSÃO NO LEGISLATIVO
O documento destaca que liberar o aborto nesses casos via decisão do STF seria intervir em atribuições do Poder Legislativo. Segundo os advogados do Senado, "os parlamentares desejosos de promover mudanças na legislação sobre o tema jamais contaram com força persuasiva suficiente para convencer em número suficiente os seus pares. Portanto, as disposições do Código Penal relativas ao ponto em discussão ainda vigem, passados mais de setenta e cinco anos de sua edição, não por mera omissão ou distração, mas pela vontade da maioria do Congresso Nacional".
O Senado cita ainda pesquisa realizada em 24 e 25 de fevereiro deste ano pelo instituto Datafolha. Nela, 58% dos entrevistados disseram que grávidas com zika não deveriam ter direito ao aborto, e 51% foram contra a interrupção da gravidez mesmo quando confirmada a microcefalia do feto. Assim, diz o documento, "a repulsa ao aborto está profundamente arraigada na cultura brasileira".
O Senado também defendeu que a Anadep não tem legitimidade para apresentar esse tipo de ação, uma vez que não trata de interesses dos próprios defensores públicos. A Advocacia-Geral da União (AGU), em nome do governo, e a Procuradoria-Geral da República (PGR), também apresentaram a mesma opinião. A AGU também foi contra o aborto, mas a PGR opinou que, caso o julgamento prossiga, a interrupção da gravidez deve ser permitida em casos de zika.
Na avaliação do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, obrigar a mulher com zika a seguir com a gravidez prejudica sua saúde psíquica e equivale a um ato de tortura. Segundo ele, as grávidas devem ter a opção de querer continuar ou não com a gestação nesses casos. O Senado discordOU, dizendo que não há elementos assegurando que a saúde psicológica da mulher é melhor assistida pela permissão do aborto em casos de zika. Para isso cita uma pesquisa realizada em 1995 nos Estados Unidos.
"Um artigo, resultante de pesquisa abrangente efetuada no âmbito da população norte-americana, que comparou dados de ansiedade em mulheres com gestações indesejadas, entre as que optaram por levar a gestação a termo e aquelas que optaram pelo aborto, aduz: 'De todas as mulheres, aquelas que abortaram tiveram taxas significativamente superiores de subsequente ansiedade generalizada, quando controlada a amostra por raça e idade na entrevista'", diz trecho do documento.
Mais adiante, acrescenta: "Nesse sentido, na fase de ponderação em sentido estrito, se a tanto se chegar, não parece razoável demandar o sacrifício de nascituro viável para socorrer a necessidades e inseguranças, embora graves, da gestante, porque essas necessidades podem vir a ser superadas com o tempo, enquanto que a perda da vida humana jamais se supera."
A Anadep também pediu a ampliação de algumas políticas públicas voltadas às grávidas com zika e às crianças com microcefalia. Nesse ponto, o Senado também foi contra a aceitação da ação. Entre outros pontos, alegou que não cabe o STF intervir em medidas tocadas pelo Poder Executivo.
"Esse respeito é devido, em caráter ainda mais intenso, quando se é notório que o País atravessa uma das piores crises econômicas de sua história e, portanto, é especialmente necessário e prudente ser cuidadoso com medidas que possam sobreonerar os já combalidos recursos do erário nacional", dizem os advogados do Senado.