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Geral
23/01/2014 10:11:36
Após um ano, 90 sobreviventes da Kiss ainda preocupam médicos
Como uma árvore que possui galhos finos e altos, quase escondidos, o pulmão de pelo menos 90 sobreviventes do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ainda tem áreas intocadas e infectadas pela fuligem da fumaça tóxica.

G1/LD

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Imagens mostram o pulmão de um dos feridos no incêndio na casa noturna antes e depois da limpeza realizada com o broncoscópio (Foto: Reprodução/RBS TV)
Como\n uma árvore que possui galhos finos e altos, quase escondidos, o pulmão de pelo\n menos 90 sobreviventes do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ainda tem\n áreas intocadas e infectadas pela fuligem da fumaça tóxica. Essas dezenas de\n pacientes continuam a preocupar profissionais dos centros de medicina do Rio\n Grande do Sul um ano após a tragédia que deixou 242 mortos e mais de 600\n feridos. Por isso, equipes multidisciplinares se dividem para atender, tratar e\n evitar sequelas.\n \n A\n figura de uma árvore invertida é o melhor exemplo que o pneumologista Hugo\n Oliveira encontra para desenhar o pulmão dos feridos. Segundo ele, além dos 90\n casos mais graves, principalmente de jovens que estiveram internados em Centros\n de Tratamento Intensivo, 48 outros sobreviventes continuam a frequentar seu\n consultório no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.\n \n É\n lá que o broncoscópio, um equipamento usado para examinar o órgão, entra em\n ação. Pelo menos uma vez por mês, os sobreviventes passam pela avaliação usando\n a tecnologia que permite realizar exames e enxergar as ramificações do pulmão.\n \n "Usamos\n o broncoscópio flexível para o tratamento. Através do nariz ou boca, ele\n consegue visualizar as vias aéreas e os brônquios do pulmão. Em um primeiro\n momento usamos uma substância para soltar a fuligem que se aglomerou nos\n brônquios", explica Oliveira ao G1, reiterando\n que o procedimento chegou a ser realizado até oito vezes no mesmo dia em um\n único paciente.\n \n Ao\n lado de sua equipe, o gaúcho se tornou referência no tratamento dos feridos no\n incêndio. Pela experiência inédita, teve de buscar informações com colegas médicos\n argentinos. O incêndio em uma boate de Buenos Aires na década de 1990 serviu de\n base para as primeiras decisões médicas.\n \n Segundo\n o médico, o pulmão possui 21 divisões, e o broncoscópio não consegue chegar nas\n áreas mais profundas. "A gente chega até a sétima, oitava divisão. Depois\n disso os brônquios vão ficando cada vez menores. Para liberar isso [a fuligem]\n é preciso fazer fisioterapia, usar remédios e ir eliminando ao longo dos\n meses", pontua o médico.\n \n Um\n estudo que consolida e analisa os dados verificados no tratamento dos\n sobreviventes durante o último ano será publicado nos próximos meses. O\n prognóstico dos pacientes ainda é incerto. A única certeza é o acordo firmado\n entre o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e o Ministério da Saúde com\n vigência de cinco anos para os tratamentos. "Em relação ao dano futuro\n ainda existe pouco conhecimento. Estamos usando a experiência do 11 de\n Setembro, mas lá não foi incêndio", reitera o médico Oliveira.\n \n Apesar\n de atender os pacientes no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, é o\n Hospitalnbsp; Universitário de Santa Maria que centraliza a maior parte do\n tratamento. É ali, na ala da fisioterapia, que sobreviventes se encontram três\n noites por semana. Em maio, foi criado o Centro Integrado de Atendimento a\n Vítimas de Acidente (Ciava), que conta com uma equipe fixa de fisioterapeutas,\n um terapeuta ocupacional e uma psicóloga.\n \n O\n local realiza atendimento aos queimados e pessoas com problemas nas vias\n aéreas. São 10 consultas por dia. Passado um ano de atuação, o centro soma\n 4.329 atendimentos realizados até o dia 31 de dezembro.\n \n Mesmo\n após um ano, pacientes ainda expelem secreção da fumaça tóxica que causou as\n mortes na Kiss. A rotina do Ciava se repete quase diariamente: são 42 pessoas\n que frequentam o local. E é através das atividades lá realizadas que os\n pacientes vêm tirando ao longo dos últimos 12 meses a secreção que ainda segue\n nos pulmões.\n \n A\n sessão começa quase sempre com a nebulização. Depois vem a higiene brônquica,\n uma limpeza nas partes mais danificadas do pulmão, seguida pelo treino\n respiratório. Para os pacientes mais saudáveis, as fisioterapeutas recomendam\n 20 minutos de esteira. Para os queimados, massagem nas cicatrizes e exercícios\n para fortalecer a musculatura.\n \n Foi\n ali no HUSM que Paula Fensterseifer, de 23 anos, percebeu que o pulmão estava\n em parte comprometido. Até então a estudante acreditava que cortes no pé devido\n ao tumulto e os pisões que levou na casa noturna seriam as únicas cicatrizes.\n "Escutei o pulmão dela e percebi que não estava ventilando", explica\n a fisioterapeuta Anna Ouriques, que trata a paciente.\n \n Em\n outra sala menor, em uma maca, Bárbara Felipeto, de 24 anos, costumava\n adicionar aos exercícios respiratórios atividades para retomar a memória. Logo\n após a tragédia ela perdeu o foco, se sentia cansada, não conseguia se\n concentrar e esquecia facilmente das conversas. A estudante de tecnologia em\n agronegócios já está afastada da faculdade há um ano.\n \n "Fiquei\n com um trauma bem grande. Lembro o que aconteceu e fico triste. Nunca pensei\n que iria estar em coma em um hospital", fala Bárbara, que ficou internada\n 15 dias em Porto Alegre por conta da fumaça tóxica.\n \n Apesar\n do trauma que ainda luta para superar, a tragédia promoveu a reaproximação de\n um amor antigo. Na noite do incêndio, fazia pouco mais de um mês que Bárbara\n havia terminado um relacionamento de seis anos. Depois do incêndio, ela reatou\n com o namorado Jaian Schirmer, de 26 anos. Os dois passaram a morar juntos e e\n estão esperando um bebê.\n \n "Quando\n meu namorado soube que eu estava internada, foi para Porto Alegre. Mas voltamos\n mesmo em junho, julho. Aí fomos morar juntos", conta a jovem, sem esconder\n o sorriso. "A gravidez não foi planejada, mas desde que descobri foi um\n alívio para a minha cabeça. Fico pensando no bebê, nas roupas, em como vai\n ser".\n \n De\n acordo com a fisioterapeuta Ana Lúcia Cervi Prado, coordenadora da fisioterapia\n do HUSM, o tratamento de Bárbara foi readequado para a gestação. Além da rotina\n de fisioterapeutas, pneumologistas, psiquiatras e neurologistas, a jovem agora\n frequenta também o ginecologista para o pré-natal. "Posso ter até parto\n normal", comemora.\n \n Centro concentra atendimentos e até remédios para os\n sobreviventes
\n O Ciava foi formalizado quase quatro meses após a tragédia da boate Kiss. Antes\n disso, voluntários realizavam os atendimentos desde 18 de fevereiro. A Força\n Nacional do SUS esteve na cidade nos primeiros dias após a tragédia e auxiliou\n no processo de implantação do centro.\n \n "A\n Força atuou aqui nos primeiros dias, depois esteve aqui durante os mutirões\n [até maio de 2013] e agora, como é do papel da própria Força, faz conosco as\n avaliações do acompanhamento dos sobreviventes", pontua a coordenadora do\n Ciava enfermeira Soeli Guerra.\n \n Passado\n um ano de atuação, o centro soma mais de 4 mil atendimentos, todos pelo Sistema\n Único de Saúde. O banco de remédios disponível para os envolvidos no incêndio\n também se localiza ali, apesar de ser uma atribuição do governo do estado.\n \n Para\n Soeli, a necessidade de agilidade foi um dos fatores principais para centralizar\n a distribuição, evitando que os pacientes precisassem se descolar até a 4ª\n Coordenadoria Regional da Saúde, como os pacientes comuns do SUS normalmente\n fazem no município.\n \n "Seria\n muito presunçoso dizer que não tivemos problemas ao longo deste um ano. A\n liberação de medicamentos segue um fluxo previsto em lei e isso foi revisto.\n Criamos um especial para liberar mais rapidamente. Junho, julho e agosto foram\n meses críticos disso", relembra Soeli, sobre as reclamações de\n sobreviventes para conseguir as medicações.\n \n "Outra\n queixa era a avaliação dos queimados em Porto Alegre. Trouxemos para Santa\n Maria e isso minimizou bastante. E também, a partir de julho, a Associação de\n Familiares e Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se inseriu e começou a\n ser a interlocutora dos que precisavam de atendimento. Eles fazem parte do\n núcleo gestor do Ciava", diz.nbsp;\n \n Além\n do atendimento físico, familiares e sobreviventes também têm acompanhamento\n psicossocial desde a tragédia. O Acolhimento, como é chamada a casa localizada\n no Centro de Santa Maria, realizou cerca de 4 mil atendimentos individuais ao\n longo de 2013.\n \n De\n acordo com o psiquiatra e coordenador do projeto, Volnei Dassoler, a tragédia\n apresenta maior potencial traumático por envolver jovens.\n \n "Não\n quer dizer que as pessoas não retornaram à rotina da sua vida, como os estudos,\n o trabalho, os passeios, mas isso nãonbsp; significa que está sendo feito\n tranquilamente. O luto não pode ser pensado como um processo com tempo\n pré-determinado", explica Dassoler.\n \n O\n serviço disponibilizado pela prefeitura municipal também segue o termo de\n vigência de cinco anos. Das 900 pessoas com registro em prontuário no ano de\n 2013, aproximadamente 200 seguem com algum tipo de acompanhamento, normalmente\n realizado em sessões de terapia individuais.\n \n "A\n partir do mês de agosto, propomos a realização de algumas oficinas como\n artesanarto, cinema e relaxamento. Posteriormente, avaliamos que essas formas\n de expressão e tratamento não deveriam estar concentradas em um serviço de\n saúde, mas que deveriam ser buscadas na extensão já instalada da cidade",\n disse Dassoler.\n \n Outro\n serviço disponibilizado pelo Acolhimento é a equipe de psicólogos e assistentes\n sociais, que acompanha os familiares e sobreviventes nas audiências do processo\n criminal que tramita na justiça local.\n \n Entenda
\n O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do\n Sul, ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. A tragédia matou 242\n pessoas, sendo a maioria por asfixia, e deixou mais de 630 feridos.\n \n O\n fogo teve início durante uma apresentação da banda Gurizada Fandangueira e se\n espalhou rapidamente pela casa noturna, localizada na Rua dos Andradas, 1.925.\n \n O\n local tinha capacidade para 691 pessoas, mas a suspeita é que mais de 800\n estivessem no interior do estabelecimento. Os principais fatores que\n contribuíram para a tragédia, segundo a polícia, são: o material empregado para\n isolamento acústico (espuma irregular), uso de sinalizador em ambiente fechado,\n saída única, indício de superlotação, falhas no extintor e exaustão de ar\n inadequada.\n \n Ainda\n estão em andamento dois processos criminais contra oito réus, sendo quatro por\n homicídio doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio, e os\n outros quatro por falso testemunho e fraude processual. Os trabalhos estão\n sendo conduzidos pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada. Sete bombeiros também estão\n respondendo pelo incêndio na Justiça Militar. O número inicial era oito, mas um\n deles fez acordo e deixou de ser réu.\n \n Entre\n as pessoas que respondem por homicídio doloso (com intenção), na modalidade de\n "dolo eventual", estão os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr\n (Kiko) e Mauro Hoffmann, além de dois integrantes da banda Gurizada\n Fandangueira, o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o funcionário Luciano\n Bonilha Leão. Os quatro chegaram a ser presos nos dias seguintes ao incêndio,\n mas a Justiça concedeu liberdade provisória aos quatro em maio do ano passado.\n Entre os bombeiros investigados, está Moisés da Silva Fuchs, que exerceu a\n função de comandante do 4° Comando Regional de Bombeiros (CRB) de Santa Maria.\n \n Atualmente,\n a Justiça está em fase de recolher depoimentos dos sobreviventes da tragédia. O\n próximo passo será ouvir testemunhas. Os réus serão os últimos a falar sobre o\n incêndio ao juiz. Quando essa fase for finalizada, Louzada deverá fazer a\n pronúncia, que é considerada uma etapa intermediária do processo.\n \n Se\n o magistrado "pronunciar" o réu, ele vai a júri (a pronúncia é a\n ordem para ir a júri). Outra possibilidade é a chamada desclassificação, quando\n o juiz não manda o réu para júri, mas reconhece que houve algum tipo de crime.\n Nesse caso, a causa será julgada sem júri. Também existe a chance de absolvição\n sumária dos réus. Em todas as hipóteses, cabe recurso.\n \n No\n âmbito das investigações, três delas estão sendo conduzidas pela Polícia Civil.\n Além dos documentos sobre as licenças concedidas à boate Kiss, um inquérito\n apura as atividades da empresa Hidramix, responsável pela instalação de barras\n antipânico na boate, e outro analisa uma suposta fraude no documento de estudo\n de impacto na vizinhança do prédio onde ficava a casa noturna. O Ministério\n Público, por sua vez, investiga as responsabilidades de servidores municipais\n na tragédia.
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