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Brasil
06/08/2017 10:27:00
Busca por vantagens financeiras desvia MP e Defensoria de função cidadã

UOL/PCS

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Luciana Zaffalon passou os últimos quatro anos esquadrinhando sua tese de doutorado, apresentada em fevereiro deste ano na Fundação Getúlio Vargas. São 336 páginas mapeando os 566 processos analisados pelo Tribunal de Justiça de 2011 até 2015 e o comportamento da Assembleia Legislativa, do Ministério Público e da Defensoria Pública no período, incluindo os salários que foram depositados. O recorte foram as duas gestões em cada órgão.

Nesta entrevista, a supervisora-geral do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciência Criminalística) e ex-ouvidora externa da Defensoria Pública afirma que o longo título de sua tese, "Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: Blindagens e Criminalizações a Partir do Imbricamento das Disputas do Sistema de Justiça Paulista com as Disputas da Política Convencional", foi justificado por meio de decisões e números colhidos para o trabalho. E que a função cidadã está cada vez mais distante das instâncias públicas, cada vez mais preocupada com seus vencimentos pecuniários.

Leia a entrevista concedida ao UOL de seu escritório, na segunda-feira passada.

UOL - Qual o comportamento do Tribunal de Justiça em relação aos recursos do governo do Estado?

Luciana Zaffalon - Com relação ao mecanismo de suspensão do mandado de segurança, em apenas um caso, nos anos em que pesquisei, o governo não é atendido quando pede a suspensão de [decisão de] primeira instância para garantir diretos a pessoas privadas de liberdade. Isso só acontece em casos dramaticamente desumanos.

Você já tem uma situação limite, já conseguiu que a Defensoria ou o Ministério Público provocassem o Judiciário para que aquela situação cessasse, fosse uma decisão judicial garantindo os direitos, e você tem o governador do Estado pedindo que cessem os efeitos dessa decisão.

Nos processos que analisei, em apenas um dos casos o presidente do TJ não atendeu aos interesses do governador. O governador geralmente é atendido quando se opõe a atender direitos mínimos a uma pessoa que já está presa.

Nos processos que analisei, em apenas um dos casos o presidente do TJ não atendeu aos interesses do governador

O que mais me incomoda é a argumentação usada pelos despachos do TJ nas decisões que fundamentam suspensão alegando a impossibilidade de aquela medida ir adiante porque representa um ônus público porque não havia uma previsão orçamentária. O mesmo tribunal que chega a ficar com 21% das suplementações orçamentárias do Estado no período analisado.

A Justiça julga em causa própria, e o MP defende em causa própria?

Há um elemento que não está na tese: é de que maneira todas as carreiras passam regularmente por eleições onde os únicos atores que votam nos cargos para preenchimentos são os próprios membros da carreira. São eleições de âmbito estadual, com mobilização de toda energia eleitoral. Quais os pontos que mobilizavam os votos? E aí você passa a observar de que maneira o fator corporativo se coloca nas disputas internas e de que maneira as eleições coroam projetos muito mais corporativos e que acabam com uma dinâmica de financiamento --e os números trazem isso.

No ano de 2015, o MP gastou só com benefícios (salários, abonos e bonificações) R$ 421 milhões. Ele recebeu de suplementação orçamentária R$ 216 milhões. Se não tivesse esse gasto com penduricalhos, não precisaria recorrer ao Executivo para a suplementação orçamentária de suas despesas.

Há a necessidade de o gestor da carreira negociar com o Executivo para pagar os penduricalhos corporativos que mobilizam as eleições internas, e os órgãos estão preocupados com questões corporativas nas eleições.

De que maneira isso afeta o interesse público?

O que o resultado da pesquisa nos mostra é que nas pautas corporativas essas carreiras avançaram vertiginosamente. Já naquilo que é a razão de ser do Ministério Público [a cidadania], isso tem se afastado do combinado. No tribunal há as suspensões de segurança. Se vai para o MP, pode lembrar que ele é responsável pela fiscalização externa das polícias. Como é que tem sido feito? Temos, nos números oficiais, 2,3 pessoas morrendo nas mãos de policiais por dia no Estado de São Paulo.

O órgão que deveria fazer o controle externo das atividades policiais se converteu no gestor dessas práticas. Os últimos sete secretários da Segurança Pública são oriundos do Ministério Público. Isso reforça muito mais a espiral elitista de afirmação corporativa do que de fato a consecução do prometido nos avanços na qualidade de vida das pessoas que estão submetidas ao Estado de São Paulo --seja a política pública de saúde, de educação, de segurança pública.

Todas essas políticas que são a razão de ser dessas instituições não têm avançado como os benefícios corporativos. Há uma grande confusão de prioridades nas agendas, e a cidadania tem ficado para trás.

O órgão que deveria fazer o controle externo das atividades policiais se converteu no gestor dessas práticas. Os últimos sete secretários da Segurança Pública são oriundos do Ministério Público

Há pressão para que a Defensoria aja conforme as pretensões do Estado, também ligada às vantagens pecuniárias?

Há uma força de lado a lado. Do mesmo jeito que há uma tentativa de cooptação da Defensoria pelo Executivo, também há uma aproximação desses defensores do governo do Estado. São dois elementos importantes nesse sentido: a Defensoria tem apenas 11 anos. Ela ainda está em disputa, mas nós [cidadãos] estamos perdendo. Nesse período, no Tribunal de Justiça e no MP já era pacificada a autonomia para apresentar projetos de lei à Assembleia Legislativa. A Defensoria conquistou esse direito durante o tempo da minha pesquisa.

Se a gente olha que em 2015 a Defensoria teve um gasto de R$ 60 milhões com as gratificações pagas aos membros da carreira e deixou de seguir adiante com o convênio firmado com a OAB por uma dívida de R$ 16 milhões, é só fazer a conta. A gente teve fechamento de posto de atendimento ao cidadão porque as dívidas não foram pagas e, ao mesmo tempo, não questiona o pagamento de benefícios. É nisso que a Defensoria está investindo sua energia?

Prender mais significa mais segurança?

Se você vai prender alguém por um homicídio, você precisa de um corpo. A prisão por drogas é mais fácil de fazer. Uma pedra de crack, com uma batida de coturno, vira dez --e vira tráfico, e não porte. O combinado quando a lei antidrogas foi reformada em 2006 era "vamos parar de prender usuários e prender traficantes com penas mais duras". O que acontece na prática é que as mesmas pessoas estão sendo presas, mas como traficantes, com os pés de chinelo cumprindo penas mais duras e a população prisional explodindo --e São Paulo é o carro-chefe desse tipo de prisão.

O problema é o que está sendo considerado como sucesso de política de segurança pública. Prender, para mim, não é [sinônimo de sucesso]. Os homicídios estão caindo, mas o número de mortos pelas polícias está cada vez mais alto. Você tem aqui um fascismo social, de pretos, pobres e periféricos, e o Estado está garantindo a morte, a prisão ou a periferia. O sistema de Justiça tem que funcionar para mitigar a absoluta falta de dignidade que as pessoas têm sido tratadas no Estado.

O combinado quando a lei antidrogas foi reformada em 2006 era 'vamos parar de prender usuários e prender traficantes com penas mais duras'. O que acontece na prática é que as mesmas pessoas estão sendo presas, mas como traficantes

Há outro problema que é a criação [pelo MP] de órgãos específicos onde quem ocupa essas vagas é selecionado pela cúpula das instituições, sem concurso. A gente tem isso nos grupos especiais do Ministério Público. O grupo de controle da atividade policial segue esse modelo. O Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado), de crime organizado, também. São órgãos de promoção da justiça social [cujos integrantes são] selecionados pelas cúpulas das instituições. A mesma cúpula que vai para a negociação orçamentária com o governo do Estado.

O controle, então, passa a ser todo do Estado?

O Estado tem sua responsabilidade no deixar viver e no deixar morrer [dos presos sob sua responsabilidade]. O Estado tem optado pelo deixar morrer --na mão da polícia ou dentro do sistema prisional. As pessoas estão sendo descartadas, em territórios bem demarcados. A gente vive em um Estado de exceção absoluta, com aparente normalidade.

Outro lado

Por meio de nota, o Tribunal de Justiça afirmou que tem todo o interesse que se produzam análises que possam ajudar a Justiça paulista e brasileira e, a partir das informações trazidas pela pesquisadora, deu início a uma série de estudos para verificar a pertinência dos dados por ela levantados e a consistência dos recortes utilizados para as conclusões.

O Ministério Público do Estado de São Paulo afirmou que "inúmeros membros do governo estadual têm sido processados na esfera cível e penal pelos membros do MP-SP, que têm autonomia no exercício de suas prerrogativas". Segundo o MP, promotores e procuradores que integram o governo aceitam o convite em caráter pessoal, não institucional, e a indicação do procurador-geral de Justiça pelo governador a partir de lista tríplice se dá por comando legal.

O governo do Estado rebateu as declarações da pesquisadora, dizendo que a análise "é parcial e equivocada em relação à composição do secretariado estadual". "O quadro de secretários é amplo e conta, além de ex-integrantes do Judiciário e do Ministério Público, com professores universitários, pesquisadores, representantes da sociedade civil e das áreas científicas, cultural e servidores públicos de carreira. A escolha é feita de forma a melhor atender ao interesse público, aproveitando-se do conhecimento, da competência técnica e capacidade de gestão de cada um destes profissionais. Importante destacar também que o Estado é defendido judicialmente pela Procuradoria-Geral do Estado, que possui nos quadros profissionais que praticam a advocacia pública com reconhecida competência, eficiência e espírito público."

A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) afirmou que todos os reeducandos do sistema prisional recebem assistência médica ambulatorial e de emergência, nas próprias unidades ou na rede pública de saúde, "com destaque para a cura de mais de 85% dos casos de tuberculose em ambiente fechado, meta que ultrapassa o recomendado pelo Ministério da Saúde, que é de 80%".

"O Estado de São Paulo é o único do país que possui um Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, que presta atendimento exclusivamente para presos. Atualmente, 54 presídios disponibilizam atendimento médico graças à pactuação com os municípios –-quando o município recebe incentivo financeiro para assumir a Atenção Básica dentro dos ambulatórios de saúde das unidades prisionais", diz a nota.

A SAP apontou na nota que está em andamento "o maior plano de expansão de unidades prisionais já visto no país". "A Secretaria não mede esforços para ampliar o programa de Centrais de Penas e Medidas Alternativas: hoje há 68 CPMAs, por meio das quais, as pessoas que cometeram crimes de baixo potencial ofensivo e sem grave ameaça, prestam serviços à comunidade. O total de pessoas atendidas pelo programa desde 1997 é superior a 150 mil. Atualmente há mais de 12 mil pessoas prestando serviços à comunidade".

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