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ImprimirA 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar, nesta terça-feira (2/9), uma ação que discute se a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), liderada por Edir Macedo, deve devolver R$ 101 mil doados por uma dona de casa de Samambaia (DF). Esse montante era parte de um prêmio de cerca de R$ 1,8 milhão da Lotofácil recebido pelo então marido dela, que era gari.
O relator no STJ, Ricardo Villas Bôas Cueva, abriu o placar com voto favorável à anulação da doação e, portanto, à devolução do dinheiro por parte da Igreja Universal – o que segue a decisão anterior do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) sobre o caso. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista, ou seja, de mais tempo para análise, do ministro Moura Ribeiro.
No processo, obtido pela coluna, a mulher alega que buscou uma “esperança” para a vida financeira ao entrar para a Igreja Universal em 2006 e que o pastor pedia um dízimo no valor de 10% dos ganhos para cada fiel “alcançar o sucesso financeiro, profissional e familiar”. Também atribuiu a motivação à fé.
A situação financeira do ex-casal se transformou quando o ex-gari recebeu uma fatia de um bolão da Lotofácil em 2014. Foi então que a dona de casa, que só completou o ensino fundamental, afirmou ter contado do prêmio para o pastor, que lhe deu um número de uma conta bancária para transferir 10% do valor para a igreja no dia de um culto.
O ex-maridorealizou duas doações– de R$ 182,1 mil e de R$ 200 mil – para a conta indicada no dia seguinte. O pastor teria lhes prometido “que suas vidas seriam abençoadas, [e que] fariam uma viagem internacional”.
Doações de menor valor eram depositadas em sacolas durante os cultos na Igreja Universal. A coluna optou por preservar as identidades do ex-casal por razões de segurança.
“Com o tempo, a Requerente foi percebendo que tudo aquilo que lhe foi prometido não passava de meras enganações, visto que já estava naquele ambiente, por mais de 10 (dez) anos, e que não lhe permitiu alcançar a tão sonhada prosperidade financeira, mas sim estava só afundando, perdeu seu dinheiro, marido, entre outras coisas, razão pela qual, decidiu nunca mais retornar naquela igreja”, escreveu a defesa.
Ambos se divorciaram em outubro de 2015, partilhando o restante do prêmio. Dois meses depois, a mulher doou um carro HB20 Premium 1.6 (modelo 2013/2014) à Igreja Universal e, em seguida, lhe destinou um cheque de R$ 101 mil, questionado no STJ.
A mulher nega ter assinado um documento que ateste os repasses à Igreja Universal nesses dois anos. Essa falta de “requisitos formais” ensejou o processo e levou o à anulação da doação no TJDFT, entendimento mantido no voto do ministro Villas Bôas Cueva no STJ.
“Após tudo isso, só restou a dor e o desespero, visto que a Requerente encontrava-se sozinha, sem dinheiro, sem saber o que fazer, só fazia chorar, pois não lhe restava mais nada”, completou a defesa dela.
Ao descobrir em 2020 que o ex-marido havia entrado com um processo para anular as doações de R$ 182,1 mil e de R$ 200 mil dois anos antes, disse que ficou “muito esperançosa” de reaver os R$ 101 mil e o carro automático, que estimou custar R$ 70 mil na época. Isso porque já havia uma sentença favorável ao ex-gari na ocasião.
A dona de casa, que alegou “miserabilidade” para pedir a gratuidade na Justiça, conseguiu vitórias na 1ª e na 2ª instâncias sobre os R$ 101 mil, mas não sobre o carro, para o qual há um documento com firma reconhecida. A ex-fiel deixou a Igreja Universal em 2020.
“Parte-se da premissa de que a transferência de bens ou valores de elevado valor em benefício de instituições religiosas configuram doação, conforme estabelecido no Código Civil, uma vez que tais instituições não estão alijadas da observância dos institutos do direito civil que não comprometam o núcleo da liberdade religiosa. Como o dízimo e oferta eclesiástica não foram previstos no Código Civil de forma especial, subsumem-se ao instituto jurídico da doação”, explicou a decisão em 1ª instância.
O que diz a Igreja Universal sobre o caso
A Igreja Universal defendeu que as doações eram válidas ao classificá-las como “atos meta-jurídicos de fé”, isto é, como dízimos e ofertas, que estão fora do escopo do Código Civil.
“Enquanto a doação é fato jurídico da espécie negócio jurídico bilateral, e, portanto, disciplinada pelo Código Civil, o dízimo e a oferta estritamente eclesiásticos, como é o caso dos autos, é ato meta-jurídico, estranho ao direito, pois, como dito acima, é um ato de consciência ou fé, que não interessa ao mundo do direito”, argumentaram os advogados da Igreja Universal.
A entidade também alega que o depósito do cheque configura um “ato unilateral”, a partir de uma “vontade livre e consciente” da ex-frequentadora da igreja evangélica, sem interferência do pastor:
“Por tal motivo, não há que se falar na obrigatoriedade de formalização da oferta, até porque impossível à entidade Ré saber previamente quem pretende fazer uma oferta por meio do depósito em sua conta bancária, e, até mesmo, identificar quem fez tal oferta, na medida em que a maioria delas sequer é identificada”, complementou.
Ainda não há uma data marcada para a continuação do julgamento. Segundo o regimento do STJ, ministros têm até 60 dias, que podem ser prorrogados por mais 30, para devolver um voto-vista.